Estes dias, mais uma vez, o mar “engoliu” diversas praias da Baía de Guanabara e em outros pontos do litoral, assim como alagou/inundou várias comunidades e favelas localizadas à beira mar provocando prejuízos materiais, como a destruição de móveis (geladeiras, sofás, documentos pessoais, alimentos etc), e colocando em risco a saúde das pessoas por doenças de veiculação hídrica e leptospirose; assim como danificou infraestruturas urbanas importantes cujos custos financeiros de reconstrução são bastante elevados.
O Movimento Baía Viva recebeu vários vídeos e fotos dos impactos e prejuízos provocados pela ressaca do mar nas comunidades das ilhas do Governador (Parque Royal) e do Fundão (Vila Residencial da UFRJ) e nas praias da Engenhoca e em Paquetá, que estão todas disponíveis em nossas redes sociais: Instagram ou Facebook.
A situação em outros trechos do litoral brasileiro também é muito preocupante e já vêm afetando as economias locais e a vida das populações, como descrito no artigo: Artigo: “Os desafios das mudanças climáticas e a elevação do nível do mar” (Diário do Rio, Abril/2020).
Diversos estudos do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) criado em 1998, já há alguns anos, apontam as cidades litorâneas como as brasileiras, como as que apresentam maior vulnerabilidade às mudanças climáticas.
Este cenário de elevação do nível médio do mar (MMM), decorre das chamadas marés meteorológicas formadas por grandes ondas e de ressacas, em geral produzidas por ciclones no Atlântico Sul e estão associadas a eventos como ventos e chuvas extremas e causam inundações nas zonas costeiras.
Para além do acalorado debate científico e dos contraditórios discursos políticos feitos pelas elites globais em foros internacionais, como os que têm ocorrido em instâncias da ONU, sobre se tecnicamente estamos vivenciando, na escala planetária, uma “Crise Climática” ou uma “Emergência Climática”, como neste caso nos tem alertado a jovem ativista ambiental sueca Greta Tumberg, líder do movimento #Greve das escolas pelo clima, o que importa é que num curto prazo de tempo os governos, empresas e a sociedade comecem a agir aqui e agora!
Apesar de termos sediado a Eco 92 (1992) e 20 anos depois a Rio+20 (2012), a verdade é que, até hoje, efetivamente não saíram do papel por parte da Prefeitura do Rio, as estratégias previstas no “Plano de Adaptação da Cidade do Rio de Janeiro às mudanças climáticas”, publicado em dezembro de 2016, documento produzido pela conceituada equipe multidisciplinar do Centro Clima da COPPE/UFRJ e que contou com a colaboração de competentes técnicos de 17 órgãos municipais, além de profissionais capacitados do governo estadual e de algumas empresas (no que pese sua formulação ter tido pouquíssima participação da sociedade civil).
A maioria governista da Câmara de Vereadores do Rio também tem sido bastante omissa, negligente e leniente com relação a este tema de interesse comum da coletividade, uma vez que, infelizmente, ainda hoje, este não ocupa espaço privilegiado na agenda política da nossa cidade: e muito menos tem sido uma prioridade efetiva da maior parte dos parlamentares durante a votação do orçamento público anual do município.
A grande maioria das importantes recomendações e propostas que constam do relatório final da CPI das Enchentes, aprovado desde 17 de outubro de 2019, até agora, lamenta-se que não saíram do papel: com isso, o atual insensível prefeito continua impunemente a fazer cortes orçamentários bruscos nas verbas destinadas à manutenção da infraestrutura urbana (como: limpeza de bueiros e melhoria da limpeza urbana nas favelas e desobstrução de valões). Assim como houve redução, nos últimos anos, no orçamento municipal voltado a ações de prevenção das inundações, como: contenção de encostas, reflorestamento, programa de educação ambiental e sanitária, coleta seletiva, drenagem urbana, contratação de Agentes Comunitários de Saúde, entre outras.
Ao observar-se o orçamento aprovado anualmente pelos vereadores(as) – e em especial ao analisarmos a sua execução ao final de cada ano -, comprova-se a inexpressividade e falta de prioridade política das questões relativas à necessidade imediata e algumas urgentes, que deveriam estar voltadas à adoção de medidas e ações de adaptação, monitoramento e mitigação dos impactos das mudanças climáticas, em especial numa cidade litorânea como o Rio de Janeiro, que tem uma extensa orla marítima com 265 km e 90 km de praias que estão sujeitas, como tem sido visto cada vez mais, aos efeitos da elevação do nível do mar em função das variações climáticas.
No caso de nossa cidade, estes impactos tendem a se intensificar em função do equivocado modelo urbano-industrial adotado durante nosso histórico processo de ocupação territorial e dos espaços urbanos, em que na região metropolitana as principais cidades cresceram de “costas para o mar” quase como se quiséssemos ocultar a nossa exuberante natureza e seus valiosos ecossistemas; assim como os povos tradicionais que aqui habitavam.
Para alguns, esta ausência de sentimento de pertencimento, talvez explique a opção preferencial feita à época pelas elites políticas e econômicas (classes dominantes) por instalar exatamente na orla marítima, como no entorno da Baía de Guanabara, diversos empreendimentos altamente impactantes, tais como: lixões e indústrias poluidoras.
Foram estes “territórios opacos” – que ainda hoje, em pleno século XXI, não dispõem de serviços essenciais de saúde e educação, nem muito menos equipamentos urbanos -, que sobraram (ou foram destinados) no tecido urbano como locais de moradia precária e muitas vezes insalubres – durante a fase de modernização conservadora e autoritária do país (1964-1985) – às classes pobres que são, atualmente, reconhecidas em diversos estudos e pesquisas como as populações mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento global. Juntamente com a ausência da reforma agrária, esta é a raiz de nosso déficit habitacional para as camadas populares.
Desta forma, como resultante de nosso desenvolvimento periférico e de uma economia voltada ao extrativismo neoliberal, a produção do espaço urbano ou do “ambiente construído” (Lebfreve, Henri e Harvey, David, 1973), se deu em nossa populosa metrópole, literalmente, ocupando e destruindo grande parte da faixa litorânea e seus raros ecossistemas: como ex., somente na bela orla da Baía de Guanabara estima-se em 80 km2 a extensão dos grandes aterros realizados sob a lógica da promoção de um (falso) “progresso” ou “desenvolvimento econômico”.
Na prática, esta opção urbanística serviu para extinguir inúmeras lagoas, brejos, praias, costões rochosos, áreas de manguezais e restingas, além de produtivos territórios pesqueiros, como nos faz rememorar a extraordinária obra do saudoso geógrafo Elmo da Silva Amador, ex-professor e ex-diretor do Instituto de Geociências (Igeo/UFRJ) que foi um dos fundadores do “Movimento Baía Viva – União dos Povos da Baía de Guanabara” nos anos 1990.
Entre os principais perigos climáticos ou vulnerabilidades apontadas no “Plano de Adaptação da Cidade do RJ” (2016) destacam-se: a elevação do nível médio do mar e ondas, escorregamento de massas, formação de ilhas e ondas de calor e inundações.
Já o Estado do Rio de Janeiro, ainda hoje convive com a ausência de um Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro e o Zoneamento Ecológico-Econômico do seu território é inexistente. Pelo país a fora, a grande maioria dos municípios até hoje não dispõem de mínimos Planos de Mitigação das mudanças climáticas e de orçamentos específicos voltados à sua implementação.
Todo esse descaso e omissão governamental próprias de atos de prevarização, ocorrem num contexto em que, periodicamente, as áreas litorâneas do litoral fluminense, assim como da extensa zona costeira brasileira, já vem apresentando alta situação de vulnerabilidade, o que tem resultado no aumento da destruição de infraestruturas (calçadas, quiosques, píers atracadouros, moradias) em função do “engolimento” ou desaparecimento da faixa de areia em diversas praias e de áreas urbanas provocadas por ressacas e inundações.
Diante da complexidade dos problemas presentes no desenvolvimento do capitalismo (k) contemporâneo, talvez a partir do conceito de escalas espaciais e da análise crítica do conjunto das desigualdades sócio-espaciais presentes em distintos territórios mundo a fora, nos possa ajudar a começar a identificar caminhos alternativos (ou saídas sustentáveis e democráticas) ao sistema dominante na escala global.
Com isso, será possível e viável alcançarmos uma gradativa transformação urbana, cujos destaques devem ser para as transições energética para fontes renováveis; nos meios de transporte majoritariamente à base de combustíveis fósseis (a queima anual de carvão mineral, gás natural e o petróleo produz cerca de 21,3 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano) e na gestão do lixo por meio do consumo consciente, da reciclagem e do reaproveitamento dos resíduos. No caso brasileiro, além da redução do desmatamento e queimadas em biomas sensíveis como a Amazônia, do Cerrado e da Caatinga; é fundamental promover uma mudança radical de nossa “tradicional” dieta bovina: afinal, temos mais gado do que gente no Brasil!
Este Plano de Ação Climática, com objetivo de fazer a transição do K de uma sociedade de consumos instantâneos, excessivos e à base de produtos supérfluos, para uma economia de baixo carbono, se faz indispensável para o enfrentamento das mudanças climáticas, uma vez que está comprovado que “as cidades atualmente já consomem mais da metade da energia primária mundial com a consequente emissão de gases do efeito estufa, o que contribui para o agravamento do aquecimento global” (“Mudanças Climáticas e Cidades: Relatório Especial do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, 2016).
No cenário atual de existência de um contexto de convergência de crises ecológica, sanitária e hídrica, que se intensificou de forma dramática em escala e amplitude a partir da pandemia do Coronavírus que nos devoram como humanidade e que colapsou as financeirizadas economias globais.
Os “sinais da natureza” oriundos de eventos climáticos cada vez mais frequentes, estariam a nos alertar sobre evidências de que estaríamos próximos – ou talvez até mesmo já teríamos atingido – um “ponto de ruptura” (“tipping points”), em que, se ultrapassadas a capacidade de suporte do planeta Terra, isso geraria riscos do desencadeamento de mudanças ambientais irreversíveis que poderiam desestabilizar todo o sistema terrestre, com riscos do desencadeamento de mudanças drásticas, conforme concluiu o quinto relatório do IPCC (ONU, Novembro/2014, entre outros diversos trabalhos científicos já publicados.
Na perspectiva da secular cosmovisão e ancestralidade indígena, vivemos uma “guerra de mundos” em que “o povo da mercadoria” encontra-se ameaçado, juntamente com os povos originários, pelas ‘pandemias que nos devoram’ (livro: ”A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami”, de Davi Kopenawa). Já o líder indígena Ailton Krenak, ao analisar os riscos da pandemia do “COVID-19”, afirma que “o modo de funcionamento da humanidade entrou em crise” e que a ganância da busca de lucros sem fim vem nos transformando numa “humanidade zumbi” (livro: “Ideias para adiar o fim do mundo”, 2019).
Na escala mundial, é preciso que a definição de Planos de ação do clima nos quais devem constar estratégias de adaptação e mitigação, assim como serem disponibilizados recursos financeiros e materiais para este fim, cujos custos elevados desta transição energética e dos modos de consumismos nos espaços urbanos – no qual se destaca o resgate do direito à cidade – devem ser financiados não apenas por fontes públicas (dos orçamentos de governos), mas também pelos lucros astronômicos obtidos por grandes corporações privadas e o sistema financeiro internacional, que em sua gananciosa lógica predatória exponencial e ilimitada tem promovido, ao menos a partir da Revolução Industrial, um indiscutível “progresso destrutivo” (Löwy, Michael; “Progresso destrutivo: Marx, Engels e a Ecologia”, 2020).
No plano nacional, numa perspectiva da construção de um Projeto nacional de desenvolvimento socioeconômico com sustentabilidade ambiental a ser formulado a partir da radicalidade criativa de um processo de democracia participativa, uma das nossas potencialidades se dá na Economia do Mar (Economia Azul, ONU) que poderá ter importante relevância por sua função socioeconômica no desenvolvimento regional, para a geração de empregos e, consequentemente, na produção de receitas para os municípios.
No contexto local, os cariocas precisam de um novo governo em 2020 e uma profunda renovação com qualidade da atual Câmara de Vereadores cuja maioria é fisiológica e avessa à participação cidadã, para que o poder legislativo local deixe de agir como se fosse uma mera correia de transmissão com alinhamento automático com as forças do atraso, do obscurantismo e dos fundamentalismos, como os terraplanistas e negacionistas climáticos que comandam o governo federal na atual quadra histórica do país.
Na atual conjuntura, para além da pandemia do Coronavírus, as cidades costeiras sofrem não apenas com os riscos das variações climáticas crescentes. Há ‘sinas de fumaça’ de que paira no Brasil o fantasma autoritário do protofascismo em ascensão que pretende impor uma nova ruptura em nossa já frágil democracia.