Trump e as crianças: muito além do meme da semana, uma crise contemporânea

Nossas crianças não escolheram nada disso, mas nós temos a escolha de ajudá-las. Mais que uma escolha, uma obrigação.

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Bruna Brum é graduada em Serviço Social pela UNISINOS, com especializações em Direito da Criança e do Adolescente e Medidas de Proteção à Infância, e Mestre em Política Social e Serviço Social pela UFRGS. Atua desde 2019 como consultora técnica para o ISS-USA em casos de crianças separadas por fronteiras internacionais e é perita para o ‘Committee for Public Counsel Services of Massachusetts’, focando na reintegração familiar de crianças e suas famílias.

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Nos últimos anos, um fenômeno que desafia as fronteiras das políticas de proteção a infância tem se intensificado: o número de crianças separadas de um ou até dos dois pais, devido a questões legais, em um cenário onde as famílias estão divididas entre países distintos.

Passei os últimos dias com o conteúdo desse tema para um artigo pronto, mas sem saber por onde começar até que semana passada, a coincidência, o acaso, ou a providência, fizeram pular por todos os lados da internet, a cena de Trump ouvindo impropérios de uma criança em pleno salão oval. A criança desbocada era filho de Elon Musk, ironicamente ele também um imigrante em terras americanas. Esse acaso reuniu em uma só notícia ou meme, todas as minhas aflições para os próximos anos: deportações e a infância.

O fenômeno das CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS ainda é pouco conhecido e menos ainda estudado pela academia e pelas políticas públicas e sociais, mas já é um dos desafios mais importantes do século XXI e merece atenção redobrada na contemporaneidade porque tem potencial de se tornar epidêmico.

Mas o que são as CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS?

Antes de adentrar nesse conceito, cabe aqui pontuar que esse não é um problema exclusivo da administração Trump, mas uma questão que tem se agravado muito devido a uma mistura de 3 ingredientes típicos dos nossos tempos: o aumento do fluxo migratório efêmero ilegal (devido a busca de “qualidade de vida” e consumo, ou seja, melhores pagamentos por subempregos e trabalhos sem necessidade de formação superior); o formato de relações ditas “líquidas” que permeia os novos acordos sexuais e afetivos (sem nenhum juízo de valor, mas um fato a ser apontado porque gera filhos que a maioria dos pais não guarda relação de responsabilidade entre si); e o crescente anseio de parte das populações “locais” por deportações devido a crise de empregos que afeta o Mundo de forma sem precedentes.

Pois bem, vamos então aos fatos que não podemos mais fingir que não entendemos: as pessoas vão migrar ilegalmente cada vez mais, as pessoas vão continuar se relacionando sexualmente de formas mais livres e o trabalho tende a ficar mais escasso, ponto! Ou seja, estamos apenas no início do problema, e Trump ou a comoção gerada pelos aviões chegando com brasileiros são apenas a ponta do iceberg. O Estado brasileiro nem arranhou a superfície do fenômeno ainda, e deve se preparar para proteger a infância, pois carece de legislação, estrutura e treinamento específicos para lidar com a situação dessas crianças que, em geral, ficam à mercê de sistemas jurídicos estrangeiros sem o devido amparo de sua nação de origem.

CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS são aquelas cujo os pais migrantes, sendo de mesma nacionalidade ou não, por razões diversas, mas geralmente ligadas a deportação de um de seus responsáveis, ficam sob a guarda e responsabilidade do Estado emigrado, em decorrência de situações de risco e negligência produzida por um ou pelos dois pais. Nos EUA, por exemplo, onde um grande número de brasileiros está em situação irregular, milhares de crianças têm suas vidas alteradas de forma drástica, algumas até sendo adotadas por famílias americanas, à revelia dos pais brasileiros. Em geral, tratam-se de famílias brasileiras de baixa renda, que não podem arcar com a reintegração de suas crianças por conta própria, pois não possuem nem meios de pagar uma passagem. Casos para os quais não existe uma legislação clara ou protocolos institucionais para reintegrar estas crianças ao Brasil ou oferecer algum tipo de solução legal que garanta a proteção de seus direitos. Na verdade, não existe nem um departamento ou telefone para informar que há uma criança ou família brasileira precisando de auxílio do Governo. Relatos daqueles que procuraram instâncias como a Polícia Federal ou a Defensoria Pública, a resposta foi a mesma: não é de nossa alçada!

É da alçada de quem, então?

De acordo com estimativas de organizações não governamentais, quase 250mil brasileiros residem ilegalmente nos EUA, e destes, 50mil menores de idade, e outras 10mil crianças brasileiras já nascidas lá, portanto legais, mas com pais ilegais. Além disso, a imensa maioria destes 200mil brasileiros adultos são jovens, em idade fértil e vida sexual ativa, o que aponta o potencial crescente do número de famílias que enfrenta ou enfrentará separações forçadas devido a questões imigratórias, resultando em crianças que ficam sem saber o que será de seu futuro: se serão reunificadas com suas famílias no Brasil, se serão adotadas ou se permanecerão sob a guarda de instituições estrangeiras. No entanto, o Brasil não dispõe de uma estrutura formal para lidar com a complexidade desses casos, que envolvem não apenas a proteção da criança, mas também a questão de nacionalidade, direitos humanos e questões diplomáticas.

Em face desse cenário, a ausência de uma legislação ou da atualização de leis internas à luz de convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, afim de regular e direcionar a situação dessas crianças, é urgente. O Brasil não possui uma estrutura institucional ou protocolo oficial para garantir o diálogo internacional, o acompanhamento e a reintegração dessas crianças com suas famílias no nosso território. Isso cria um vácuo de incertezas jurídicas e práticas, com crianças sendo tratadas de forma negligente, sem a devida atenção aos Princípios e Normativas para a Proteção Integral da Infância e da Adolescência.

O Brasil, como participante da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, tem a obrigação de garantir que o direito à convivência familiar e comunitária seja preservado, assim como a celeridade dessas questões que devem levar em consideração o tempo de desenvolvimento da criança. A criação de uma estrutura formal e institucionalizada para atender a essas demandas é essencial para garantir que as crianças afetadas por deportações e separações internacionais possam ser reunificadas com suas famílias de forma segura e eficaz.

Além disso, é importante destacar que o fenômeno não ocorre apenas nos EUA, mas em outros países onde a imigração brasileira é significativa. No Japão, na Europa e na América Latina, por exemplo, também há casos de crianças que ficam à mercê de sistemas jurídicos estrangeiros, sem o apoio do Brasil, que deveria, por obrigação legal e humanitária, proteger seus cidadãos, especialmente os menores de idade.

A Urgente Necessidade de uma Política Pública

A falta de uma abordagem sistemática e a ausência de leis específicas para lidar com CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS, além de uma rede de apoio institucional, resultam na exclusão dessas crianças de um retorno seguro às suas famílias e, por vezes, na ausência de qualquer orientação. Os pais ficam perdidos, muitas vezes sem saber como acessar o apoio consular ou quais as vias legais para lutar pela guarda de seus filhos. A resposta do Estado brasileiro, até o momento, tem sido desorganizada e fragmentada, sem propor uma ação eficiente para garantir o direito à convivência familiar.

Desde 2019, tenho trabalhado junto a organizações não governamentais americanas e diretamente com o governo de Massachusetts, para acompanhar casos complexos de reunificação de crianças brasileiras separadas de seus pais nos EUA. Durante estes seis anos de experiência no tema, pude perceber uma série de lacunas que comprometem o processo de reunificação. A falta de protocolos, a ausência de políticas públicas adequadas e o desinteresse do Estado brasileiro em criar uma rede de apoio que facilite o retorno das crianças e o acompanhamento pós-reunificação são apenas alguns dos obstáculos encontrados. O que é mais alarmante é a omissão generalizada das autoridades brasileiras em relação a esses casos, mesmo diante da necessidade urgente de garantir a proteção das crianças e de preservar os vínculos familiares.

Infelizmente, o Estado brasileiro não custeia ou coordena as ações necessárias para que as crianças separadas de seus pais nos Estados Unidos possam ser reunificadas com a devida segurança e amparo. Todas as despesas e estudos (insuficientes para as crianças brasileiras) são bancados pelo governo americano ou por ONGs, sem qualquer interação ou apoio institucional do Brasil. Isso resulta em um processo moroso e desestruturado, em que as famílias brasileiras ficam à mercê da boa vontade de instituições estrangeiras, enquanto o Estado brasileiro se abstém de atuar efetivamente.

Casos como o de M., no Espírito Santo, e F., em São Paulo, são exemplos claros dessa falta de ação coordenada. M., deportado para o Brasil em 2020, após ser separado de seus filhos nos Estados Unidos, enfrentou anos de luta para conseguir que o Estado brasileiro o auxiliasse na reunificação com seu filho, a qual ocorreu em janeiro passado, sem nenhum auxilio do governo brasileiro, o que perdura até agora (de assistência no Brasil, não está conseguindo nem o Cadastro Único). F., por sua vez, teve seu filho sequestrado em 2019 ao tentar emigrar ilegalmente para os EUA. Em 2023, quando mãe e filho se reencontraram, por intermediação exclusiva do Estado americano, a falta de suporte institucional no Brasil tornou o processo de reintegração familiar ainda mais difícil, especialmente considerando o diagnóstico de espectro autista de seu filho e que o mesmo não falava mais o português.

Tais casos, ambos de famílias em situação de risco social, e tantos outros em todo o país, evidenciam a gravidade do problema das CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS. A ausência de uma estrutura institucional de suporte, a falta de um protocolo claro e a morosidade do sistema público de proteção infantil são questões que precisam ser tratadas com a seriedade que elas exigem. Não podemos mais aceitar que, em pleno século XXI, crianças brasileiras, em situação de vulnerabilidade, fiquem reféns da ineficiência estatal, enquanto outros países se empenham em garantir a proteção dessas crianças.

Iniciativas como a da Dep. Talíria Petrone, da Min. Macaé Evaristo e o reconhecimento da situação por parte do governo brasileiro são passos importantes, claro, contudo, eles não tipificam o real desafio que são as crianças sem a proteção familiar direta, assim é necessário que essas ações sejam aprofundadas e que se criem soluções concretas para atender os casos já existentes e os que certamente surgirão nos próximos anos, uma vez que a migração e as deportações tendem a aumentar com o tempo.

A situação das CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS não pode ser tratada com indiferença e nem deve ser subsequente ou coadjuvante ao problema das deportações. O Brasil precisa agir agora, com rapidez, com articulação entre seus diversos órgãos e uma abordagem interinstitucional eficaz, para garantir que os direitos dessas crianças sejam respeitados e que elas possam viver ao lado de suas famílias, e que uma pesquisa ampla seja feita para determinar o tamanho real do problema. O Estado brasileiro precisa cumprir seu papel de proteger suas crianças, sem mais desculpas ou atrasos.

As CRIANÇAS INTERFRONTEIRAS representam um desafio humanitário e jurídico urgente, sendo essencial que o governo brasileiro crie uma política pública abrangente que proteja as crianças que se encontram nessa situação, com medidas claras para garantir o retorno das crianças aos seus familiares, ou, caso necessário, encaminhá-las para adoção ou acolhimento dentro dos parâmetros legais que respeitem a sua cidadania. Além disso, a criação de um protocolo diplomático para tratar do tema com outros países é fundamental, especialmente em contextos de imigração e deportação.

O trabalho já realizado, a partir de dados coletados nos últimos anos, apontam para um problema social, e não pontual, e que tende a se agravar rapidamente. Tenho tentado informar figuras políticas, autoridades de Estado, instituições e representantes da imprensa, mas tais informações parecem não sensibilizar nenhum destes entes até agora. Espero que o momento de indignação criado recentemente não caia no esquecimento e faça nossas autoridades prestarem mais atenção nesse fenômeno. Mesmo diante da ausência destes serviços, há anos busco respostas e alternativas às famílias que atendo, e sempre me coloco à disposição dos representantes do Estado para fornecer mais informações, dados e relatos sobre essa situação, para contribuir de forma ativa na construção de estratégias e respostas a essa grave questão.

À medida que a globalização avança e os fluxos migratórios se intensificam, o Brasil precisa se adaptar e criar mecanismos para lidar com essas situações de forma eficaz. Sem a implementação de uma pesquisa que aponte o tamanho exato do problema, de uma legislação específica e a criação de um aparato institucional adequado, o país continuará deixando milhares de pequenos brasileiros vulneráveis. É hora do Estado brasileiro assumir a responsabilidade e garantir a proteção de suas crianças, independentemente de onde elas estejam no mundo, pois, para a enorme maioria delas, essa ajuda será a única possibilidade de uma vida digna e segura.

Nossas crianças não escolheram nada disso, mas nós temos a escolha de ajudá-las. Mais que uma escolha, uma obrigação.

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