Último oratório setecentista do Centro sofre descaso e abandono por irmandade “católica” milionária

Monumento do século XVIII é tombado pelo Iphan e está pichado e virtualmente destruído, após anos de descaso da Ordem Terceira do Monte do Carmo, uma associação supostamente católica que possui patrimônio milionário, mas parece desprezar o patrimônio cultural brasileiro que está - infelizmente - sob sua (ir)responsabilidade

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Escorado e semi-destruído, o lindo oratório de Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança sofre com o descaso da irmandade "católica" Ordem do Carmo, cujos bens culturais sofrem com abandono

O problema dos imóveis que pertencem a centenárias associações católicas (ou ex-católicas?) e que estão caindo aos pedaços e prestes a desabar já foi seguidamente tratado em diversas reportagens aqui no DIÁRIO. É o caso da quase tricentenária igrejinha da Lapa dos Mercadores, na Rua do Ouvidor 35, interditada pela Defesa Civil e cujos blocos ameaçam cair na cabeça de passantes da travessa do Comércio e de diversas outras ruínas alvo da incompetência dos gestores de muitas destas vetustas ‘irmandades’. Como o Rio é uma cidade histórica – a única capital de um império europeu abaixo do Equador – temos muitos problemas do tipo a corrigir. Desta vez, o trabalho porco de (má) administração de uma destas ordens pode ocasionar a destruição total de um espetacular monumento do século XVIII que é simplesmente o último exemplar de 73 (setenta e três!!) oratórios de rua que existiam por todo o Centro da cidade do Rio de Janeiro.

Quem caminha pela rua do Carmo, em direção à rua do Ouvidor, passando a rua Sete de Setembro e olha para o lado direito, pode observar o (que restou do) belo e raro oratório de Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, outrora colocado à esquina do hospital que era de propriedade da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo (VOTNSMC). Como dissemos, o único que restou dos setenta e três oratórios existentes na cidade no tempo dos vice-reis. O arco foi construído depois de concluída a obra do adro da então “nova Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo” (tem frente para a rua Primeiro de Março, e fica ao lado da majestosa Antiga Sé), que, segundo o site do Iphan, foi mandado fazer em 1764. A construção do lindo arco em pedra hoje totalmente depredado e imundo, teve por finalidade permitir a comunicação da Rua “Detrás do Carmo”, atual Rua do Carmo, com o adro na nova Igreja. O local se chama hoje “Beco do Carmo”, e o oratório está logo na entrada dele, acima do arco, com aspecto de ponto de baixo meretrício (foto). Na parte superior, foi colocado o oratório, também de pedra e envidraçado, com a bacia revestida de azulejos coloridos portugueses, ladeado por volutas e encimado por uma linda “cruz de trevo”. A imagem de Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, que ficava no oratório, teoricamente se encontra dentro da Igreja anexa que, segundo informações, corre hoje severo risco de incêndio e deve ser objeto de uma matéria investigativa a ser publicada aqui nas próximas semanas. O arco de pedra, assim como a igreja e o oratório, são bens tombados pelo Patrimônio Histórico e Cultural, tutelados pelo Iphan. O oratório está abandonado há mais de uma década, envolto em madeirames podres, que parecem arriscar desabar na cabeça de quem passa.

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Nesta foto observa-se o pórtico em ferro fundido com o número 38, do edifício inteiro que pertence à associação e fica logo à direita, com o nome da irmandade cuja desídia em tomar conta do que é seu coloca em risco o último oratório de rua do século 18 existente em todo o Rio de Janeiro.

Muitas irmandades ainda seguem modelos de organização social muito arcaicos, o que gera, além de insegurança fiscal, muita lentidão na tomada de decisões, o que pode ser fatal para ações que se considerem emergenciais, como é o caso da preservação do patrimônio cultural brasileiro.. Contudo, isso não justifica mais de uma década de omissão em face dos cuidados com esse monumento, último representante dos oratórios que existiam na cidade. A paralisia dessas instituições dá início a ações judiciais que parecem intermináveis em razão de recursos que são interpostos como forma de protelar uma decisão que deveria ser tomada no âmbito da antecipação da tutela, ou seja, na primeira instância. O mais triste é quando se tem notícia que essas irmandades tem recursos e nada fazem de efetivo para reverter o estado de degradação do seu próprio patrimônio, optando pela disputa judicial. O caso do Rio é muito grave e esse oratório é um ótimo exemplo de como o nosso rico patrimônio cultural vem sendo relegado a algo de importância menor. Na muy leal e heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a Versalhes brasileira, o nosso patrimônio é roubado por moradores de rua na calada da noite e vendido a preço de banana no ferro velho, que, por sua vez, recebe a vistoria da polícia a bala. Proteger esse último oratório se traduz em um gesto divino, em mais de um sentido“, disse o arquiteto, urbanista e ex-superintendente do Iphan Rio, Manoel Vieira, especializado em patrimônio cultural e histórico, entrevistado pelo DIÁRIO DO RIO sobre o assunto.

Para o doutor em História e ex-diretor do Museu Histórico Nacional, Paulo Knauss de Mendonça, nada justifica o descaso. “O oratório de rua da Igreja do Carmo é um documento histórico especial do tempo em que a devoção católica era vivida nas ruas da cidade. Seu estado de conservação exemplifica como o patrimônio religioso do Rio de Janeiro tem sido destratado. Nada justifica seu abandono. O Centro do Rio de Janeiro reúne um conjunto de igrejas coloniais raro no mundo e que compõem o ambiente cultural da cidade. Sua valorização deveria ser parte do projeto de revitalização do Centro da cidade. Por ora, o que assistimos é um abandono que anuncia tristes consequências. Perde-se a oportunidade dessa área central do Rio de Janeiro se tornar um atrativo da cidade, que deveria ser animado por concertos e festas religiosas.” Mas não precisa doutorado pra recriminar o mau trato a um monumento tão simbólico e que tão bem define o Centro do Rio. José Maria da Silva, porteiro de um prédio próximo, dispara: “Essa gente não pode ser católica. Como pode não fazerem uma limpeza, tirei pichações do meu muro de casa em Caxias por 750 reais. Eu acho que só querem saber de receber seus aluguéis gordos. Eles têm várias lojas alugadas pra bares e restaurantes por aqui. Católicos só no nome!“, indigna-se.

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Especialista em Centro da Cidade, o arquiteto e urbanista Washington Fajardo é uma autoridade em patrimônio histórico no Rio, tendo presidido por 8 anos o órgão de proteção à história da cidade, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). Fajardo lembra que o Beco do Carmo tem muita história. “É lamentável e altamente preocupante o abandono deste espaço de memória do Rio que guarda um dos últimos exemplares do sistema de drenagem colonial da cidade. O “caniveau” é uma drenagem superficial por meio de uma calha central executada em cantaria. Hoje, no Centro do Rio, somente temos esta técnica presente em três logradouros. No Beco do Carmo, que serve de passagem para o Oratório, no Beco dos Barbeiros e no Beco da Cancela. Sendo que o caniveau do Beco do Carmo é de extrema artesania com as placas de granito cobrindo a calha de drenagem. Que os órgãos de patrimônio cultural possam intervir e impedir uma perda maior.”

Nos velhos tempos em que a cidade não dispunha de iluminação pública, a população se reunia em torno dos oratórios, que ficavam acesos à noite, com suas imagens católicas iluminadas, não só para rezar como para fazer aquela resenha que desde os antanhos é típica do carioca. Os oratórios guiavam as pessoas pela região, às escuras com exceção de uma ou outra janela aberta iluminada e dos lindos oratórios que ficavam em arcos, esquinas e mesmo paredes de prédios.

Há cerca de 10 anos o oratório recebeu a armação de madeira, hoje totalmente podre e possivelmente com risco de queda, e foi definitivamente abandonado pela Ordem do Carmo, que possui inúmeros prédios e lojas na região. O edifício inteiro de número 38, com um imenso – e novo – restaurante no térreo é um deles; no segundo andar, funciona há décadas o mais tradicional restaurante vegetariano da cidade. Na rua do Carmo, diversos outros sobrados pertencem à irmandade; neles funcionam bares, e restaurantes. Também é proprietária de um edifício inteiro na rua Primeiro de Março número 10, entre vários outros imóveis, que incluem a Igreja que fica ao lado da antiga catedral, que foi totalmente restaurada e corre risco por ser geminada ao maltrapilho e infaustamente mantido templo da irmandade, que, diz o porteiro José Maria, parece ser católica só no nome. Afinal, se dizer “católica” garante à associação isenção de IPTU para todos os seus imóveis.

As irmandades são ordens religiosas leigas, que, apesar de – ao menos em seus estatutos – professarem a fé católica, são independentes da Igreja e não estão sob o comando da Arquidiocese do Rio. É comum a confusão; recentemente reportagens da TV Record associaram de forma completamente aleatória as vendas de imóveis por uma irmandade com a estrutura eclesiástica e administrativa da Igreja. Erro crasso. As irmandades são como associações de pessoas que não são padres nem freiras mas que mantinham igrejas particulares, cemitérios, hospitais e outras obras de caridade. Teoricamente, a Arquidiocese poderia interferir e intervir nas ordens ou irmandades que enfrentam administrações danosas a seu patrimônio, porém ao fazê-lo a Igreja arrisca ter responsabilidade sobre suas eventuais dívidas, inclusive trabalhistas. Assim, algumas acabaram se tornando meras administradoras de imóveis, sem compromisso algum com suas finalidades originais. Outras, viraram feudos de um ou dois aproveitadores. Segundo especialistas consultados pelo DIÁRIO, a maioria das diversas irmandades administra com cuidado e esmero seus bens e a(s) igreja(s) a ela vinculadas, como é o caso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, que tem prédios bem cuidados, e sua igreja está sempre tinindo e bem cuidada, sendo uma grande atração turística no Rio. “Sempre que você vê uma igreja católica caindo aos pedaços, arruinada, no Rio, pode ter certeza que é de alguma associação particular que teima em não entregá-la aos cuidados da diocese“, ensina uma fonte ligada à hierarquia católica, que pediu para não ter seu nome mencionado.

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A despedaçada Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, na rua do Ouvidor 35, esquina com Travessa do Comércio. Exemplar de nave elíptica raríssimo, construída em 1766, foi a primeira a possuir carrilhão de 12 sinos, na cidade. Hoje, ao menos por fora, está arruinada, e é mais um exemplar de abandono por uma associação que se diz “católica”, mas parece priorizar imóveis alugados, ao cuidado com seu patrimônio histórico e sua devoção católica.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Várias coisas juntas. A primeira é que a igreja católica e por extensão essas pseudo irmandades foram acostumadas ao socorro do Estado brasileiro. Sempre. Então, elas continuam aguardando que o Poder público as socorram, como se ainda vivêssemos naquele tempo em que elas tinham poder ou influência. Por essa razão não fazem nada aguardando esse socorro. A segunda é que como o Estado mudou e a igreja católica ficou mais pobre porque os fiéis não dão mais dinheiro (ninguém acredita mais que se não der dinheiro vai para o inferno) vemos esse patrimônio se deteriorar e sem solução. Acho que a solução desse problema não passa pelo Poder público diretamente, mas sim por uma solução de incentivo cultural, via Lei Rouanet. Se são patrimônios tombados e de interesse cultural e patrimonial, acho que são passíveis de obter esse incentivo. Aí, talvez, entre a incompetência de seus administradores, ou boa vontade para correr atrás disso.

    • Nunca administraram nada, só gostam de receber dinheiro público ou de alguma empresa que vai ajudar apenas para abater no imposto de renda, do bolso deles não sai um centavo, mas exploram o local até o osso.

  2. Essas Ordens religiosas já eram…
    Veja que essa mesma do Carmo vendeu vários imóveis no Centro para o Opportunity que, em seguida, elevou bem os preços dos alugueis cobrados ao fim dos contratos até então em vigor dos imóveis…
    Isso ali mesmo na região do Centro, na Carioca e que, inclusive tiveram atingidos contratos como naquela época ainda existentes lojas Vesúvio, Bar Luiz e outras.

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