O sofrimento é meu, mas o problema é de meu marido, o que não deixa de afetar todos na família. Ele parece não estar nem aí para suas loucuras. Porém, se estou casada com ele é porque também faço parte do que estou me queixando. Aprendi isso lendo e me questionando. Não é assim que o senhor trata as coisas?
Estou casada há treze anos e temos três filhos. Dou importância à família e ao futuro deles. Minha questão – sinto vergonha de dizer – é que o meu marido não consegue guardar dinheiro. Ele ganha bem, mas não consegue fazer patrimônio, nem pensar no futuro. Isso ainda me corrói por dentro, me abate. Sinto-me sem forças, estou perdida, e não tenho conseguido mudar o rumo das coisas. Brigo e de nada adianta. Ele diz que eu quero tirar dele o único prazer que ele tem na vida.
Sinto que meu marido não fala a verdade quando o assunto é dinheiro. Ele tem sua turma do pôquer. Joga duas vezes por semana. É um vício compulsivo. Jogo pesado. Comprou um carro muito bom, depois disse que estava vendendo para aplicar em imóveis. Quando fui ver, não era nada disso! O carro está nas mãos de um parceiro de jogo, ou seja, ele o perdeu na jogatina. Seu pai perdeu fortuna na mesa de jogo, dinheiro e propriedades na região mais nobre da cidade. Está no sangue, é um mal que vem de sua família.
Chego a pensar que ele é um perdedor, sonha alto demais e acaba perdendo. Isso me arrepia. Meus filhos já estão percebendo alguma coisa. Eles falam sobre o assunto de maneira enviesada. Vejo preocupação em seus olhos. A tristeza está na cara, nas notas escolares. Isso é doença, doutor?
Vício é doença!
Um escorpião corria desesperado. O fogo se alastrava pela floresta perseguindo-o. Chegou ao fim da linha, pois logo à sua frente havia um lago. Encurralado entre o fogo e a água, pensou em suicidar-se quando viu um sapo se preparando para pular no lago. Gritou para o amigo pedindo ajuda, mas num primeiro momento foi recusado pelo sapo, que estava com medo dele. O escorpião retrucou dizendo que nada de mal lhe faria pois, se ficasse, morreria queimado, se pulasse na água, morreria afogado. O sapo era sua salvação. Este, convencido, inclinou-se e o escorpião subiu em suas costas. Em seguida, confiante, pulou no rio. Mas… No meio da travessia, o escorpião picou o sapo.
O sapo, sentindo a ação do veneno, perguntou ao escorpião por que fizera aquilo, se ele também morreria. O escorpião simplesmente respondeu que não podia trair sua natureza.
O que você pode fazer para resgatar seu marido da mesa de jogo? Não é uma tarefa fácil, mesmo porque não se trata somente do jogo de cartas propriamente dito, mas de algo que o transcende, muito além do ritual do jogo em si: trata-se de alguém que porta o espírito de jogador. Seu marido joga cartas, sim, mas ele joga também na relação amorosa, nas emoções com a família, na profissão. Ele joga na vida. Sua relação com o mundo constituiu-se dessa maneira. De todo modo, o jogo é a proteção encontrada por ele para se refugiar da dura realidade da vida.
Mas, como você mesma diz, há uma participação sua na jogada. O fato é comum também com esposas de alcoólatras. Há um desejo que, inconsciente, funciona como uma cumplicidade. São os desejos contrariados. Por isso você demorou tanto para se incomodar, precisou manter este marido jogando cartas, perdido no jogo. Você vai suportar ver seu marido fora da mesa de jogo? É um preço caro a ser pago.
A metáfora do escorpião ilustra bem do que se trata em todo e qualquer movimento impulsivo, louco, ou seja, uma determinação insana que alimenta um vício em sua força paradoxal. A diferença coloca-se no fato de que o humano é um ser que pensa, portanto, tem instrumentos adequados para lidar com as suas questões, seus sofrimentos, tendo, assim, possibilidades de promover mudanças significativas em sua vida conturbada.
O que leva alguém a se tornar viciado em jogo de cartas? Esse vício é diferente de tantos outros, como, por exemplo, o da bebida, das drogas, de sexo, cigarros, alimentos? Vício é vício. Mas existe uma diversidade em suas formas, e cada indivíduo lida de maneira particular com o seu. Não há uma uniformização. Cada um é um na sua relação de dependência, em seu vício.
O problema maior de seu marido é uma necessidade imperativa de perder. Ele se faz perder. Não lhe interessa ganhar no jogo, não tem graça, isso não lhe causa gozo algum. Perder sim, esse é seu barato, sua essência, sua verdade.
Vício é a dependência extrema de alguma coisa. É sintoma grave que faz doer, pois machuca forte a todos que estão à sua volta. É um sofrimento psíquico que se caracteriza por uma violência incomum, insolente, pois é o que comanda o indivíduo a frequentar emoções desencontradas, totalmente arredias à lógica comum. São emoções truncadas, desconexas, patológicas e, pior, sempre repetitivas. Para o viciado é imperativo que seja somente daquela maneira. O viciado é aquele que caminha por uma via exclusiva, única, de errância, de necessidade de perdas não elaboradas.
Portanto, os vícios na vida cotidiana são repetições das emoções doentes, emoções enfermas, emoções que habitam os obscuros escombros de nossa vida de infância. Mas de onde vem essa força incongruente que impulsiona o viciado a repetir o mesmo fato, mais uma vez?
O agir compulsivo presente no vício é uma resposta ética que o indivíduo constrói como meio de sobrevivência frente a um trauma sofrido na primeira infância. Trata-se de algo único. Não existem duas formas de vício que se igualem. São maneiras distintas de se lidar com o mesmo objeto. O vício, então, é uma resposta sintomática, surge como meio de sobrevivência frente a uma perda não elaborada, uma resposta frente a um desamparo radical incrustado por um trauma na constituição familiar. Trata-se de um luto não realizado.
Toda e qualquer criança é sensível a traumas em sua origem, a perdas e acidentes que os próprios pais não puderam suportar, sobre os quais não puderam pensar, refletir e falar com clareza sobre o que se perdeu ali. E é então a criança quem vai pagar caro por essa recusa, por exemplo, jogando. A base de um vício é a resultante de uma emoção que restou por ali, nos desvãos da historicidade familiar, uma emoção abortada de significação, órfã de palavras, de diálogo aberto e, por isso mesmo, necessita viver às escondidas e constantemente transmutada em impulsão agressiva, compulsão ao vício.
São emoções que permanecem crianças porque não puderam ser ditas e escutadas, ou, de alguma maneira, acolhidas pelos pais, pelo seio da família com as palavras devidas.
O jogo, nessa perspectiva, é a linguagem encontrada como única saída no sentido de pedido de socorro: criança embaralhada, maculada nos golpes indeléveis do carteado sobre a mesa, perdida entre as cartas à deriva, mescladas nos avatares da sorte e do azar. Suas emoções, esparramadas, partidas em pedaços desconexos somente aí encontrarão algum amparo, alguma conexão: na infinita repetição do jogo.
O sintoma aparente, manifesto, então, de seu marido, é uma compulsão ao jogo de cartas. Mas, certamente, a causa, a razão verdadeira de seu sofrimento está na perda, no gozo que ele, mesmo sem o saber, encontra nessa perda. Ele perde o dinheiro no jogo para se proteger da impossibilidade da perda interna de um objeto inelutável; aquele em relação ao qual a geração anterior manteve o silêncio, a impossibilidade de uma separação. Tal objeto lhe causa dor, é um corpo estranhamente familiar que lhe dói muito, mais que a perda material.
A impulsão que leva alguém a se danar neste ou naquele panorama de uma mesa de jogo, subverte todas as normas da lei, seja da vida íntima, privada, quanto da vida pública, social. Portanto, não há dúvida alguma: seu marido está doente, está mentalmente enfermo e necessita de tratamento. Mas você também está envolvida nessa história e necessita de ajuda. Qual a sua participação na trama? Por que deixou passar tantos anos? Todo cônjuge de alguém viciado, de alguma maneira, necessita manter acesa a chama do vício. Há, em todo caso, uma participação silenciosa, inconsciente.
Você mesma deve se questionar, sim, qual é a sua participação nessa jogada. Às vezes, comemos, bebemos, compramos… jogamos, com a boca, ou as mãos do outro. Seu marido é levado a fazer coisas das quais nada sabe, contra ele próprio. É uma maneira grotesca de se fazer mal e a todos àqueles que o amam. O viciado é um ser corrupto por essência, pois corrompe todos os vínculos, os elos, os liames sociais, os pactos. Ele só faz denegrir os laços afetivos, porque ele mesmo vive na quebra.
O viciado mortifica e se mortifica. Frente a todos os seus entes queridos, ele busca um reconhecimento: o de ser querido e amado na posição de perda, de coitado, de depauperado, de humilhado, de comiserado. Trata-se de buscar ser reconhecido e amado numa posição de fracasso. Mesmo contra seu querer consciente, suas convicções, suas certezas, sua moral, sua educação, sua religião, suas virtudes. Ele transgride para gozar na desgraça de uma perda. Ele goza na cumplicidade de um olhar onde se vê sendo visto como coitado. Esse olhar já está presente no espírito de seus filhos.
Trata-se de um quadro clínico que não é tão fácil de tratar, pois ele nem mesmo se acredita, ou se reconhece, em seu sofrimento emocional. A ele não interessa ganhar, porque o jogo serve – e muitíssimo bem – de substituição a uma cena de enorme sofrimento. Na perda, ele atualiza uma cena fantasmática da sua infância: não está ali enquanto um sujeito que pensa, mas sim como objeto. Ele é essa criança que não quer perder algo de seu mundo interno e necessita se pautar na vida a partir de uma grande ilusão: sonhar alto demais. É isso aí!