Nos últimos anos um dos grandes prazeres que tenho exercido, em especial período de isolamento social, foi ter tido a oportunidade de, junto com meu filho Francisco, de estar sentado na televisão e poder assistir aos grandes clássicos do cinema. O que tem me trazido bastante curiosidade é que, muitas vezes, alguns clássicos, dentro do mesmo espírito de Júlio Verne nas Vinte Mil Léguas Submarinas, fizeram de maneira visionária a projeção de narrativas que tem paralelos com fatos do cotidiano, não só tecnológico, mas também econômicos, sociais e políticos.
Neste conceito, uma das obras que me chamou bastante atenção é o clássico filme criado pelo genial diretor alemão Werner Herzog com o nome original “Aguirre, der Zorn Gottes”, cujo título brasileiro foi “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, lançado em 1972.
O filme, com fotografias belíssimas, teve locações na Amazonia, tanto no Peru e no Rio Amazonas, em um processo de construção bastante crítico, com mais de um mês de gravação, onde aconteceu o início do histórico conflito entre o diretor Herzog e o principal protagonista de muito dos seus filmes, o austríaco Klaus Kinski, ator extremamente polêmico e conhecido especialmente no Brasil por sua imagem no filme Nosferatu, no filme o ator quis abandonar as gravações e foi ameaçado de morte pelo próprio Herzog, como registra a história paralela do cinema.
O filme, que é inspirado em fatos e figuras históricas, conta a trajetória de uma expedição espanhola na América realizada em 1561 e comandada por Dom Pedro de Urzúa, tendo como protagonista o “Capitão” Lope de Aguirre, encarnado por Klaus Kinski, e foi amparado em uma narrativa obtida no diário do Frei Gaspar de Carvajal, que participou de outra mítica expedição.
Mais que o lado histórico, o filme mostra os efeitos mentais e emocionais sofridos por homens que têm o poder e com isso tem suas atitudes alteradas e exacerbadas, em situações limites, o que nos leva a paralelos com a situação que temos vivido na política brasileira recente.
Na trajetória, a expedição armada espanhola atravessa os Andes e monta balsas a partir do Rio Orinoco, atravessando a Amazônia em busca pela lendária El Dorado, conhecida como a “Cidade de Ouro”. A expedição é enviada pelo governador Gonzalo Pizarro e chefiada posteriormente por Dom Pedro de Urzúa, acompanhado do seu “segundo em comando”, que é o “Capitão” Lope de Aguirre. Que em sua missão se autoproclama mandatário e se rebela contra toda a coroa em um ato de loucura crescente para buscar criar o seu próprio Império.
O filme é uma jornada dentro da insanidade que muitos homens desenvolvem quando recebem o poder e lá retratada na genial visão de Herzog, pois à medida que a expedição avança, o diretor retrata o Capitão Lope de Aguirre em devaneios de grandeza, começando a brigar com todos os seus aliados e dizimando-os, um a um, na busca incessante do poder.
Sem considerar aqueles que o apoiaram, aqueles que seguem em sua jornada taxados de vilões e executados, ou que morrem pelas próprias condições da louca jornada que ele insiste em seguir no seu universo paralelo de poder, sob o comando do Capitão Aguirre que continua incólume, como se fosse um mandatário de Deus e o poder mesmo em cada derrota na sua jornada.
Em sua trajetória descendo um rio, em uma balsa, adotando práticas totalmente esdrúxulas pelo seu comandante mor Capitão Aguirre, como até a de utilizar um negro para correr nu com o objetivo de assustar as populações indígenas que moram nas áreas a serem conquistadas, numa postura, além de racista, totalmente heterodoxa e insana nas práticas de domínio de invasão — aliás uma heterodoxia que temos observado muito no Brasil atualmente.
Aos poucos, o Capitão Aguirre acirra seus trejeitos corporais de militar soberano diante da sua tropa que se esvazia progressivamente e se perde na sua própria loucura e ambição, derrubando seu próprio chefe que abandonou um cavalo que descia na balsa, matando seus aliados e terminando na célebre cena em que o Capitão Aguirre, já sozinho na balsa que desce o rio, observa o poder e o território fictício sobre seu domínio vazio, enquanto só lhe sobram combates com os micos que invadem a sua balsa e que, nesse mundo paralelo, viram seus únicos e totais companheiros e também inimigos, e que o seguem somente pela falta de discernimento.
A loucura e ambição em uma trajetória, eliminando parceiros e inimigos, numa mera ideologia de buscar deter todo poder absoluto, ungida sabe lá de onde, é a tônica do filme “Aguirre, a Cólera dos Deuses” e precisa ser reconhecida e assistida.
Infelizmente, o Brasil de hoje, na política, lembra muito as loucuras e devaneios da expedição filmada por Herzog, seus personagens em especial por seu Capitão Aguirre. Assim como na história, a tripulação da nossa balsa precisa reconhecer esses devaneios antes que essa Cólera dos Deuses nos afunde e que ainda continuem a encantar os micos.