William Bittar: Algumas considerações sobre Petrópolis e sua arquitetura

William Bittar conta a história da urbanização e arquitetura de Petrópolis, que nasceu com planejamento inspirado em uma cidade alemã que não foi respeitado

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Museu Imperial, em Petrópolis
Museu Imperial, em Petrópolis - Foto: Uwe Bergwitz/Shutterstock.com

Ergue o corpo, os ares rompe,
Procura o Porto Estrela,
Sobe a serra, a se cansares,
Descansa num tronco dela.

Marilia de Dirceu – Lira XXXVII
Tomás Antonio Gonzaga

Conhecida como Cidade Imperial, curiosamente este título não acompanha seu desenvolvimento desde os primórdios da fundação.  Só na penúltima década do século XX a cidade pode ostentar oficialmente esta justa honraria.

Mais do que qualquer outro núcleo fundado ou que tenha progredido ao longo do século XIX, Petrópolis conseguiu, de forma resumida, expressar as significativas mudanças de uma Colônia luso-brasileira em uma tentativa de implantação de um Império nos moldes franceses.

Aqui estão aliados, respondendo a novos fundamentos sociais, planejamento urbano e uma nova arquitetura, definindo cenários para um outro modo de vida que, no alto da serra, poderia ser desfrutado por imigrantes, segmento constitutivo da camada mais pobre local, e pela nobreza, com todo seu luxo e exuberância, que ali permaneceria por mais de seis meses por ano.

Em Petrópolis foram raras as adaptações decorrentes da mudança de uso, pois as edificações eram definidas para atender a necessidades básicas, implantadas em lotes mais generosos, por vezes dotados de água e sistema de esgotamento.

Subir a Serra da Estrela era chegar a outro mundo, longe do calor úmido da Corte, próximo ao cais, próximo de inquietantes epidemias e das ruas estreitas e sujas.  Subir a serra era viver a vida da Corte, numa cidade limpa, planejada, onde circulavam nobres em suas carruagens, a caminho do próximo sarau.

Tal postura, mesmo com a República e ainda ao longo do século XX permaneceu, fazendo de Petrópolis, após a melhoria dos acessos rodoviários, local de veraneio em belas casas construídas próximas ao Hotel Quitandinha, de visitas às suas sorveterias, ou mesmo um prosaico passeio de domingo, quando curiosas crianças deslizavam (e ainda deslizam) pelos lustrosos pisos em parquet do antigo Palácio de Verão, depois Museu Imperial, permitindo, ainda que de forma fragmentada e pontual, uma tênue compreensão de como Imperadores se comportavam num Império Tropical.

DENOMINAÇÃO

Segundo a tradição, o nome Petrópolis seria uma sugestão do Mordomo da Casa Imperial, Paulo Barbosa, em homenagem ao Imperador D. Pedro II, inspirado na cidade russa de São Petersburgo.

LOCALIZAÇÃO/CLIMA/TOPOGRAFIA

A cidade de Petrópolis está situada no alto da Serra da Estrela, a 809m de altitude, nos contrafortes da Serra do Mar, no Estado do Rio de Janeiro.  Seu clima é classificado como tropical de altitude, com temperaturas amenas, com médias entre 14° e 23° C.

Uma característica da região é o aumento do índice pluviométrico entre novembro e março e também a presença de um forte nevoeiro, o “ruço”, que cobre a cidade e a serra ao final da tarde.

A topografia local, entrecortada por vales, definiu seu modelo de ocupação original, de forma linear, frequentemente acompanhando o leito dos rios Quitandinha e Piabanha.

HISTÓRICO

Com a descoberta do ouro na última década do século XVII, iniciou-se uma ocupação gradativa do interior, cujo acesso se fazia por antigas trilhas indígenas ou bandeirantes. Alguns caminhos tornaram-se importantes vias de penetração e ao longo destas, diversas sesmarias foram doadas para os primeiros ocupantes daquelas paragens.

Um destes caminhos, serra acima, passava por onde se desenvolveria a cidade de Petrópolis conforme descreveu Charles Ribeyroles em seu Brasil Pitoresco:

“Esta paisagem oferecia dois aspectos bem diversos. Nos cumes, a natureza agreste e selvagem derramava-se, verde e abrupta, pela extensão dos picos de granito. Nas encostas, as terras cultivadas, as herdades, as granjas, pequenos tetos e pequenos lares onde o trabalho honesto apresentava os seus efeitos

As sesmarias, com o passar do tempo, dividiram-se em fazendas, depois logradouros conhecidos da região, como Correas, Samambaia, Quitandinha, Córrego Seco e outros.

Após a Independência, em 1822, o recém Imperador do Brasil, D.Pedro I, em suas constantes viagens, tomou contato com aquela região serrana, de clima ameno e agradável, onde pernoitava com relativa frequência nas terras do Padre Correia, que tentou, infrutiferamente, adquirir.

Recebidos por Dona Arcângela Joaquina da Silva, que solicitamente abrigava a grande comitiva, geravam muitos transtornos e despesas, que não passaram despercebidos a Dona Amélia, a jovem Imperatriz educada nas casas europeias. Atendendo às solicitações da esposa, insistiu na compra daquelas terras, oferta recusada por D. Arcângela.

Em 1830, por indicações daquela mesma senhora, comprou a fazenda do Córrego Seco, onde pretendia instalar um Palácio de Verão, empresa que a abdicação, em 1831, impediu de concretizar.

Somente no segundo reinado, seu filho e sucessor, D.Pedro II, iria iniciar a realização do sonho do pai, através de decisões do Mordomo da Casa Imperial, o Conselheiro Paulo Barbosa, que havia arrendado a antiga fazenda, visando arrecadar fundos e mantê-la em condições satisfatórias.

O Major Koeler, seu último arrendatário, na ocasião da renovação, resolveu propor uma forma diferente de ocupação: a instalação de uma colônia agrícola de imigrantes alemães.

A resposta veio de forma solene com a promulgação do Decreto Imperial n° 155, arrendando a fazenda a Koeler, em troca do levantamento da planta da futura povoação, definindo a distribuição dos prazos,  lotes com dimensões suficientes para permitir a subsistência de uma família, aos colonos e do Palácio de Verão.

A criação de Petrópolis como estância de veraneio e polo de atração da nobreza deveu-se principalmente a estas decisões.  Os acessos foram melhorados.  Imigrantes alemães que chegaram ao porto do Rio de Janeiro foram ali instalados, além do incessante trabalho do major Koeler, que organizou a colônia de seus conterrâneos, em 1843 e três anos depois traçou o plano urbanístico da cidade e continuou a construção do Palácio Imperial, iniciada em 1845.

Em 1844, Koeler firmou um contrato com a firma de Dunquerque, Carlos Delmer & Cia, prevendo a vinda de 600 casais de trabalhadores como carpinteiros, ferreiros e pedreiros, para construção imediata do suporte para assentar a Colônia Agrícola, empreendimento logo frustrado pela inadequação do terreno e a viabilidade crescente do trabalho em artesanato e indústria, sugerindo a instalação de fábricas, aproveitando a abundância das águas da região.

Este processo iniciou-se com produtos alimentares caseiros, como conservas, manteiga e queijo, seguindo-se a construção de carroças. Em 1853, várias indústrias já estavam estabelecidas na região, como uma fábrica de tecidos, três de cerveja, uma serraria e uma de calçados, gerando, em 1854, a fundação da Sociedade de Agricultura e Indústria.

Ainda durante o Império, em 1883, foi fundada a Fábrica Petropolitana , na Cascatinha, que associava ao edifício fabril, de características inglesas, a implantação de uma Vila Operária, partido que seria adotado com frequência nos anos subsequentes, principalmente após a Proclamação da República.

Petrópolis tornou-se tão importante no segundo reinado que seria possível afirmar que dividia as atenções com a Corte do Rio: tempo quente, família Real na serra (novembro a maio), regressando em épocas mais amenas e menos sujeitas às doenças tropicais.          

A própria viagem refletia os ideais da época, quando o bucolismo e o pitoresco eram valorizados: tomava-se um barco no cais da Corte, dirigindo-se até o porto da Estrela, em Magé, dali, em carruagens, subia-se a Serra.

Mais tarde, já com a ferrovia, na estação de Guia de Pacopaíba, no fundo da baía da Guanabara, fazia-se a baldeação barca-trem, que em cremalheira subia os contrafortes da montanha.

Com menos de 15 anos, já se cogitava em elevar a vila à cidade, o que ocorreu em 1857, com a formação da primeira Câmara dos Vereadores.

Em 1861 inaugurava-se a primeira estrada de rodagem do país, a União e Indústria, ligando Petrópolis a Juiz de Fora e, em 1883, o trem chegava direto à cidade.

Mesmo com a República, que frequentemente procurou obscurecer as realizações do Império, Petrópolis continuou atrativa: lá estava localizada a residência de verão da Presidência, o palácio Rio Negro.

Nos anos 1940, um dos principais cassinos do Estado do Rio de Janeiro ali instalou-se: tratava-se do Quitandinha, imponente edificação normanda, à entrada da cidade, inaugurado em 1944, atraindo turistas de todo o mundo.

Até os anos 1960 Petrópolis permaneceu como agradabilíssima cidade de veraneio ou férias, longe do burburinho do então Distrito Federal e reduto daqueles que, mais abastados, dispunham de um local mais tranquilo para descanso e lazer.

A partir daí, com o incentivo ao transporte rodoviário, ocorreu uma ocupação desenfreada e irracional, com o lucro fácil como objetivo: construíram em encostas, poluíram-se os rios, dilapidou-se o patrimônio cultural e a cidade de veraneio transformou-se em ponto de passagem, comprometendo as vias de caixa reduzida para o crescente volume de tráfego.

O TRAÇADO

 A proposta urbanística para a cidade foi definida por um plano original para época: ocupação dos vales onde corriam os rios, abastecimento para as residências e possibilidade de esgoto sanitário.  Para muitos, Koeler teria utilizado a região renana, na Alemanha, como principal referência, cumprindo seu acordo com a casa Imperial que em seu artigo 10 estabelecia que o Major deveria “levantar a planta da futura Petrópolis e do Palácio, …demarcar em prazos… todo o terreno e numerá-los”.

Os imigrantes alemães acomodaram-se nos vales, em quarteirões, que aqui têm o sentido de bairros, demarcados pelo Major, divididos segundo a região de procedência, atribuindo-lhes nomes “familiares”, na maior parte das vezes em homenagem a locais da Alemanha como Bingen, Castelânea, Ingelheim, Mosela, Nassau, Palatinato, Renânia, Siméria, Westfália. Descrevia Ribeyroles: “Alonga-se e já se estende, num raio de cinco a seis milhas, contornando morros, seguindo os cursos d’água, sem direção exata, conforme os rumos obrigatórios. No centro acham-se as duas ruas principais, a do Imperador, de traçado correto, vasta perspectiva, e a da Imperatriz, que defronta o palácio.  Duas outras ruas nascentes, opostas às primeiras, formam com elas um quadrado quase oblongo, no meio do qual se eleva uma colina…”  Além disso, o generoso parcelamento da terra (prazos) permitia uma ocupação mais racional, com preocupações com insolação e ventilação adequadas, muito diferente do lote colonial.

O traçado original, que parcialmente ainda pode ser detectado em algumas ruas do Centro Histórico, não resistiu às transformações de uma Colônia Agrícola em sub-sede do poder, ainda no século XIX, nem às modificações mais recentes, quando uma tranquila cidade de veraneio tornou-se via de passagem por suas ruas estreitas, e os antigos lotes, que comportavam casas com implantação diferenciada, foram ocupados de forma predatória por edifícios de vários pavimentos, comprometendo todo o abastecimento de água, luz, serviços de esgotos e fluxo viário, alterando questões básicas de conforto ambiental.

A bacia hidrográfica local, com destaque para os rios Quitandinha, Piabanha e Palatino, assistiram à redução de seus leitos ou até mesmo sua canalização. Perderam a vegetação ciliar e tiveram seus traçados alterados, com percursos retificados, comprometendo a vazão original, provocando transbordo mais rapidamente.

Além disso, as encostas, imediatamente limítrofes aos vales da cidade, receberam muitas construções sem controle ou fiscalização, em terrenos propícios a deslizamentos, consideradas suas características geomorfológicas. Acrescente-se a impermeabilização do solo com pavimentação asfáltica que aumenta a vazão das águas fluviais, contando com menos absorção.

Os resultados são trágicos, como a destruição parcial do distrito sede com a tempestade ocorrida em 15 de fevereiro de 2022.

Decorrida uma semana, a cidade ainda conta seus mortos e desaparecidos, sob polêmicas a respeito de possíveis providências que minimizassem as perdas humanas e materiais.

De fato, foi um evento extremo que, segundo as agências meteorológicas, não poderia ser previsto com exatidão com os modelos disponíveis no país. No entanto, houve precedentes em 2011. Vistorias locais deveriam provocar ações que reduzissem tantas vidas perdidas.

Fica o questionamento: até quando continuará a ocupação predatória? Não apenas nas encostas, irregulares. Mas também na cidade formal, onde edifícios multifamiliares adensam os lotes que Koeller definiu com tanta precisão e respeito à paisagem e seus moradores.

PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO

O Patrimônio Arquitetônico de Petrópolis é notável, encontrando-se ruas inteiras passíveis de preservação pela qualidade e multiplicidade de partidos e gostos, desde o neoclássico imperial até construções contemporâneas.

Um curto percurso por ruas próximas ao Museu Imperial nos permite compreender o potencial deste patrimônio: o Palácio, o paço Isabel, a Catedral de São Pedro, chalés, chácaras, edifícios em ferro (Palácio de Cristal), edificações ecléticas (Vila Itararé ou Correios), neocoloniais (Escola Pedro II), normandas (Quitandinha), déco (Teatro), modernas, construções dos anos 1970 (Centro Cultural), enfim, uma variada possibilidade de apreender a produção arquitetônica nacional, disposta em poucas quadras, que merece ser observada em conjunto com o que resta do plano Koeler.

Resta aguardar as luzes elétricas reacenderem-se, iluminando seus edifícios, ressaltando a torre da Catedral rasgando o perfil da serra que projeta sua silhueta no horizonte. Resta adiar as tentadoras compras de guloseimas (doces, chocolates e amanteigados) ou as roupas da área comercial (a popularíssima rua Teresa),  para uma futura ocasião. 

O “ruço” continua a ocultar elementos da paisagem como riachos, mirantes, cachoeiras, trilhas, com seu véu acolhendo os que partiram.

Que venha a redescoberta, um recomeço lento, porém firme, sugerindo futuros encontros, acrescentando histórias a uma cidade plena de sua rede de memórias, disposta a prosseguir.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

2 COMENTÁRIOS

  1. Maravilhoso! Fui aluna do Willian em 1994, hoje estava buscando artigos sobre esse assunto me deparei com esse artigo maravilhoso desse grande mestre, obrigada!

  2. Adorei o artigo “Algumas consideracoes…..” a respeito de Petropolis. Vivi la’ entre 1950 – 1960. Agora vivo no Canada, mas deixei o coração em Petropolis. Obrigada, William, pelas memorias dos tempos idos. Um abraço grande de Toronto.

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