O direito à cidade passa diretamente pelo ancestral direito à terra, conflito responsável por crises de diversas características: sociais, econômicas, sanitária e climatoambientais.
Enquanto novos acordos internacionais são celebrados, o mundo assiste a retrocessos que retomam práticas autoritárias segregadoras de etnias, gêneros, credos e poder econômico, num vetor contrário a vitórias obtidas através de lutas contínuas.
É trágico constatar que no século XXI, há, no Brasil, mais de seis milhões de famílias sem habitação adequada, portanto sem direito à Cidade. Enquanto isso, proliferam imóveis vazios, predominantemente urbanos.
As tribos dos pobres urbanos
Com a tutela da Igreja Católica sobre os povos indígenas, oficialmente proibindo sua escravização, o colonizador urgia substituir aquela mão de obra, principalmente quando se iniciava o plantation, um sistema agrário exportador monocultor da cana de açúcar.
Para esse novo modelo econômico, a Coroa portuguesa incrementou a atividade comercial que já existia na costa atlântica africana, onde algumas tribos praticavam a escravatura como produto de guerras ou punição. O que era uma prática social coercitiva intertribal tornava-se um negócio lucrativo para abastecer as lavouras no Novo Mundo.
No Brasil, existe a tradição que os primeiros cativos africanos chegaram ao litoral pernambucano entre 1539 e 1542, região onde se implantaram os primeiros núcleos do ciclo canavieiro. Entre os séculos XVI e XIX, outros portos receberiam levas de africanos de tribos diversas: Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Diferentes dos indígenas, que assistiram às invasões e ocupações sucessivas de suas terras e aldeias, estes milhões de africanos foram deserdados, na origem, de seus territórios, paisagens, crenças e parentes vivos ou imateriais. Não havia perspectivas ou promessas do direito à terra, senão aquele quinhão dentro das senzalas e por vezes sequer em seu túmulo, a parte que te cabe neste latifúndio, como escreveu Melo Neto.
Após a Abolição oficial, em 1888, sem motivos para celebrações, a questão da terra se apresentou em sua real nudez. Houve uma estimativa de cerca de um milhão de libertos, sem terra, sem trabalho, sem moradia. Muitos migraram lentamente para os centros urbanos, atrativos para algum tipo de ocupação. Muitos morreram nas estradas sem atingir seu objetivo. Muitos permaneceram nas fazendas e plantações, continuando suas atividades servis como se nada houvesse mudado, atestando uma real ausência de opções.
Procurando abrigo, famílias retirantes ocuparam casarões urbanos abandonados pela falta de mão de obra ou de capital, decorrente de uma abrupta mudança econômica. Surgiam as casas de cômodos.
Percebendo esta demanda, capitalistas que já haviam iniciado a construção de cortiços, habitações coletivas com pouca ou nenhuma salubridade, ampliaram estes alojamentos precários para o grande contingente que precisava de moradia, incluindo os recém-libertos.
Entre esses conjuntos, tornou-se célebre o “Cabeça de Porco”, nas imediações da estação ferroviária e do quartel general, na região central da cidade do Rio de Janeiro, que abrigava milhares de moradores em seus cubículos.
Tal cortiço foi destruído em 1893, por ordem do prefeito Barata Ribeiro, atendendo às demandas sanitaristas. A população desalojada deslocou-se para o entorno imediato, carregando as sobras da demolição para construir suas novas moradias: surgia o embrião do futuro Morro da Favela.
Quatro anos depois, soldados remanescentes da Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, muitos escravos libertos, todos pobres, sem encontrar local para abrigo, também se estabeleceram naquele logradouro, próximo ao quartel central, consolidando a primeira favela da cidade, no Morro da Providência.
Ao longo do século XX, outros núcleos seriam implantados próximos ao mercado de trabalho, evitando grandes deslocamentos. Surgiam e se expandiam os “aglomerados subnormais”, como definia o poder público.
Estes terrenos também se tornavam escassos. Em alguns casos, morros eram arrasados. Incêndios devoravam barracos. A opção pela moradia próxima ao trabalho era mais um direito negado e as favelas caminharam para as direções possíveis, inicialmente procurando a proximidade de algum meio de transporte coletivo, mesmo que lhes custassem horas de deslocamento. Ainda que a própria cidade lhes negasse, conquistava-se algum direito à cidade, porém precário, insuficiente, desumano.
O sonho da cidade grande tornava-se uma aspiração por motivos diversos: a seca, a fome, o sucesso, as oportunidades. Especialmente, Rio de Janeiro, a capital da República e São Paulo, a locomotiva do Brasil, tornaram-se protagonistas no cenário nacional.
Desde as últimas décadas do século XIX, ainda que de forma incipiente, um arremedo do processo de industrialização começara a assolar essas capitais. Da mesma forma que o modelo agrário exportador mantivera a mão de obra no campo, no plantio da cana ou do café, ambos em momentâneo processo de estagnação, a fábrica atraía essa população para o trabalho operário, insinuando salários fixos, ainda que baixos, além de outras benesses, incluindo moradia nas vilas proletárias agregadas aos complexos industriais, uma forma eficiente de controle social.
Além dos libertos, a massa operária foi acrescida de imigrantes, muitos dos quais haviam chegado ainda no período imperial, cooptados para substituir a mão de obra escrava. Originários de diversas regiões, italianos, alemães, árabes, chineses, japoneses, aportaram no Império ou mesmo no Brasil recém-republicano com a promessa de terra, trabalho e liberdade.
Na prática, encontraram, de fato, muito trabalho, por vezes escravo, nenhum direito à terra e quase nenhuma liberdade.
Insatisfeitos, inadaptados e desajustados com a real situação, muitos abandonaram a vida rural e migraram para as cidades, engrossando a classe operária que não foi ao paraíso prometido desde a Revolução Industrial.
O grande capital, mais uma vez, vislumbrava a possibilidade de lucros adicionais e, contando com incentivos do poder público, implantava as “vilas higiênicas”, independentes das fábricas, passíveis de cobrança de aluguéis, insinuando um direito fictício à moradia e à própria cidade.
A proposta arquitetônica de conjuntos habitacionais se insinuara pontualmente nas grandes capitais, inspirado em modelos europeus do período entre guerras. No entanto, tal partido só se consolidaria na terceira década do século XX, como uma variante das vilas oitocentistas.
O primeiro período varguista, entre 1930 e 1945, definiu um modelo para conjuntos de moradias, muitos deles associados aos recém-criados Institutos de Aposentadorias e Pensões – os IAP”s. Estes órgãos, procurando formas de capitalização para arcar com os futuros gastos com seus iapiários, buscaram autorização para utilização da arrecadação em carteiras prediais.
Os Institutos adquiriam terrenos, contratavam arquitetos, alguns deles de prestígio no mercado, construíam unidades que poderiam ser vendidas ou alugadas para seus associados. Tais conjuntos seriam destinados a segmentos da classe média. No entanto, este tipo de moradia não representava status elevado e seus ocupantes de fato estavam muito mais próximos de camadas mais baixas da população.
Ainda que houvesse um grau elevado de coletivismo entre seus moradores, pequenos bairros dentro de bairros, os estigmas sociais geralmente os colocavam à margem da cidade considerada formal: “essa gente de conjunto”, tratamento discriminatório usual atribuído por alguns segmentos da classe média.
Além dos Institutos, o próprio poder público decidiu participar dessa empreitada, projetando e construindo diversas unidades, algumas delas tornando-se referência na produção da arquitetura moderna brasileira, como o Conjunto Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, destinado a funcionários da prefeitura de baixa renda.
Esta unidade de vizinhança apresentava uma proposta revolucionária de moradia, agregando habitação e serviços essenciais, alguns incluídos no preço do aluguel das unidades. Acrescente-se o diálogo estabelecido entre arquitetura e arte moderna, presente nas obras de Burle Marx, Portinari e Anísio Medeiros. Por questões político-administrativas, o resultado não logrou o êxito idealizado.
A segunda metade do século XX assistiu à grande migração nordestina para o “sul-maravilha”, aumentando a demanda por habitação. Aumentaram consideravelmente as favelas e o poder público atuou implantando um programa de remoções, conceitualmente voluntárias, mas exercido de forma coercitiva e até criminosa, com incêndios em comunidades que nunca foram devidamente esclarecidos. Surgiam, entre outras, a Vila Kennedy, Cidade Alta e a Cidade de Deus. A opinião pública aceitou que estava definido o direito à cidade para aquele grande contingente populacional, assentado a quilômetros do respectivo local de trabalho, em conjuntos nem sempre concluídos ou devidamente organizados.
Sem a devida atenção do agente público, aquelas comunidades povoadas por milhares de moradores de origens diversas desenvolveram-se de forma espontânea, apesar do planejamento físico original, definindo suas próprias normas e instrumentos de ocupação e controle social.
A cidade brasileira, ao final do século XX, tornava-se um modelo urbanizado das capitanias do período colonial, distribuída entre seus donatários. Além da divisão geográfica do território, seus ocupantes tornaram-se alvo da divisão de interesses oficiais ou marginais, continuando sem o mínimo direito à terra, ou à cidade.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.