Desde a segunda metade do século XX, instituído pelo Papa Paulo VI, o dia de Sant’Ana, 26 de julho, foi consagrado às avós e avôs, acompanhando a tradição católica sobre a trajetória de Ana e Joaquim, pais de Maria e avôs de Jesus, canonizados no século XVI.
O casal vivia em Nazaré e não conseguia gerar descendentes. Assim como o Novo Testamento relata a anunciação para Maria, um anjo apareceu, avisando que Ana estava grávida, apesar da idade um pouco avançada dos futuros pais, o que seria um milagre.
Antes mesmo da canonização, a devoção a Sant’Ana e São Joaquim existia no Oriente com muita fé, a partir do século VI, quando o Imperador Justiniano ergueu uma igreja para sua reverência em Constantinopla, seu primeiro templo reconhecido.
No século VIII, este templo recebeu as relíquias da Santa que dali foram distribuídas pelo Ocidente, iniciando sua devoção em Roma e, nos séculos seguintes, celebrada em Nápoles, na Itália, e Canterbury, na Inglaterra medieval
No Brasil, a devoção a Sant’Ana é herança de uma tradição lusa, provavelmente através de uma Corporação de Ofício, pois era padroeira da Confraria de Sant’Ana da Sé, administrada pelos produtores de moedas e se difundiu por toda colônia, tornando-se inclusive padroeira de algumas cidades no Brasil e co-padroeira da cidade do Rio de Janeiro.
Durante o ciclo do açúcar, Sant’Ana foi associada à grande mãe branca dos engenhos, aquela que poderia ensinar a religião católica aos povos africanos cativos, que praticavam outras crenças, associadas à sua origem.
Essa sugerida “proximidade” entre a casa grande e a senzala certamente favoreceu ao sincretismo da santa-avó com a orixá Nanã Buruquê, energia que vibra com a chuva, os pântanos, representada como uma figura mais velha, dotada de sabedoria e serenidade, sob a saudação “Saluba Nanã”, protegida por seu roxo manto.
Na cidade do Rio de Janeiro, a devoção a Santana está presente em importantes paróquias. Em Campo Grande, a primeira capela foi construída no século XVIII, ampliada, abandonada e substituída por um edifício moderno.
Nas cercanias do antigo núcleo histórico da cidade, no Campo de São Domingos, a primeira igreja dedicada a Sant’Ana foi construída em 1735, atendendo ao apelo popular que reverenciava a santa na antiga Igreja de São Domingos, demolida em 1943 para abertura da Avenida Presidente Vargas.
Quase imediatamente, a grande praça junto àquele templo foi denominada Campo de Santana, nome que se perpetuou junto à tradição da cidade.
Antiga Igreja de Sant’Ana, demolida.
Imagem Thomas Ender, 1817
Em 1814 foi criada a Freguesia de Santana, por decreto do então Príncipe Regente, D. João, com instituição da Paróquia. Em 1870, tornou-se a maior freguesia urbana em número de moradores, abrigando uma população de baixa renda, composta por estivadores, operários, libertos, que pouco a pouco ocupavam cortiços, como o famoso “Cabeça de Porco”, nas imediações do Quartel General do Império.
Aquela região foi reduto de muitas manifestações culturais, como a casa da Tia Ciata e a Pequena África e posteriormente seria cenário para desfiles de escolas de samba na Praça XI, antes da abertura da Avenida Presidente Vargas, que provocou demolições e mudanças do traçado da região central.
A antiga igreja de Santana foi demolida para construção da estação terminal da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1858, reconstruída em suas imediações, na rua das Flores, segundo Brasil Gerson, que passou a ser denominada Santana, a partir de 1870, com a instalação do templo.
Mesmo com a abertura da nova igreja, as imediações abrigavam casas de diversões, “um dos maiores centros de reunião de malandros e desordeiros da cidade”, conforme considerava a população.
Em 13 de maio de 1926, a nova igreja tornou-se o primeiro Santuário de Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento instalado no Brasil pelo Cardeal Leme, recebendo uma das maiores custódias/ostensórios do mundo, com mais de dois metros de altura para abrigar o Santíssimo.
Custódia do Santíssimo na Igreja de Santa’Ana
Acervo Particular
Em 1939, o conjunto recebeu um novo projeto desenvolvido pelo arquiteto Ângelo Murgel, professor do Curso de Arquitetura da antiga Universidade do Brasil, com uma fachada que adotava um repertório de matriz clássica, inspirada na Basílica Papal de São Paulo Extramuros, em Roma, construída no século IV.
Igreja de Sant’Ana, Centro, Rio.
Acervo Particular
A ampla nave principal apresenta pé direito elevado, separada dos corredores laterais por colunatas simétricas de capitel coríntio que sustentavam uma sucessão de arcos plenos. Ao fundo, o altar-mor se dispõe sob uma abside com uma discreta seção circular como cobertura.
Interior da Igreja de Sant’Ana, Rio
Acervo Particular.
A abertura da Avenida Presidente Vargas, na década de 1940, além de demolir edifícios públicos e igrejas, algumas protegidas como Patrimônio Cultural, apartou definitivamente a igreja de Sant’Ana de seu contexto original.
O edifício encontra-se envolto por ruas de tráfego intenso, diante de um edifício-personagem carioca, o “Balança mais não cai”, contíguo a duas escolas públicas, fronteiriço ao Terreirão do Samba, a cerca de 500m da Passarela do Samba, involuntariamente retornando à tradição da proximidade de uma área que concentrava diversões, na passagem do século XIX para XX.
Diferente de outros templos notáveis por seu valor histórico ou artístico, a Igreja de Sant’Ana não recebe o destaque merecido, ainda que a santa seja a Co-padroeira da cidade do Rio de Janeiro e em sua nave repousam os restos mortais do Cardeal Leme, importante personagem no Distrito Federal durante turbulentos anos políticos de afirmação do governo Vargas.
A devoção já não encontra o viço de outros tempos, proporcional à relevância de Santana e São Joaquim, substituída pelos festejos comerciais do dia dos avós.
Talvez alguns cultos de matrizes africanas, em terreiros cada vez mais raros no contexto urbano, ao som dos atabaques, reverencie Nanã Buruquê, que resguarda a memória ancestral, com sua respeitosa e merecida saudação: Saluba, Nanã!