William Bittar: São João em nossas fogueiras da memória

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Festa de São João – Cordel Acervo Particular

Quando chegava o mês de junho, anunciado por algumas manhãs com nevoeiro, a garotada se alvoroçava. Afinal, se aproximavam as férias do meio do ano, trinta dias corridos em julho. Antes delas, as festas juninas, que efetivamente eram em…  junho.

Uma advertência: aqueles que rejeitam leituras saudosistas, sugiro que pare por aqui. Caso decidam por continuar, a seguir transbordará o que a memória revela ou idealiza, imagens da transição da infância para adolescência, impregnadas de lirismo do passado daquelas quase frias noites de junho.

A tradição indica que essas festas tiveram origem no século XVIII, numa celebração de camponeses da Inglaterra e França, associadas às colheitas e início do verão no hemisfério Norte.

Posteriormente, difundiram-se por toda a Europa, chegando à Portugal. Dali, através da chegada da Corte portuguesa, foi incorporada pela antiga colônia lusa, mantendo as cores, fitas e rendas.

Pouco a pouco, no final do século XX, o apelo comercial invadiu os terreiros festivos e surgiram até mesmo festas maínas, julhinhas e setembrinas. Tornou-se prioridade faturar com barraquinhas variadas, muitas delas fora do contexto, e incentivar quadrilhas com vestes sofisticadas, sinhazinhas elaboradas, muito diferentes daqueles trajes adaptados pelas mães, costurando retalhos para os vestidos ou remendos nas calças de brim-coringa (antepassadas do blue-jeans) Far-West, arrematadas por tênis de cano alto. Em vários “novos arraiais”, outros gêneros musicais, além das músicas típicas, foram incorporados, como funk e pagode, para atrair um público mais amplo.

As camisas quadriculadas masculinas, com seus lenços coloridos e chapéus de palha desfiados, sobreviveram à sanha consumista, porém algumas ostentam suas grifes.

As “maquiagens” eram improvisadas com bigodes de rolha queimada, desenhados nos rostos juvenis. As meninas, com suas marias-chiquinhas saindo dos laços de fita sob largos chapéus de palha, recebiam sardas pintadas em suas faces rosadas. Os vestidos estampados, com saias rodadas sobre algumas anáguas engomadas, coloriam a noite à luz das grandes fogueiras, onde crepitavam o milho assado e a batata doce na brasa.

As barraquinhas ofereciam de um tudo junino: quentão, canjica, pé-de-moleque, paçoca, milho verde, cuscuz, bolo de aipim. Para os românticos de primeira viagem, a eterna “maçã-do-amor”. Não poderia faltar o churrasquinho no espeto, passado na farinha de mesa, disputando a churrasqueira com os apreciados salsichões. Alguns jovens arriscavam uma caipirinha ou batida de coco, às escondidas.

Outras barracas abrigavam as brincadeiras tradicionais: pescaria, tiro ao alvo com espingarda de rolha, bola na boca do palhaço, derruba latas, argola. Em alguns daqueles arraiais do passado, um quiosque recebia encomenda de música para alguma prenda que não era devidamente identificada, provocando suspiros em muitas candidatas. Não raramente, aquele precário alto falante tornava-se um cupido nas noites de inverno tropical, juntando impensáveis casais.

Nos clubes ou escolas, o cenário colaborava com o clima das festas: a igreja, o bar e, principalmente, a delegacia. Dali sairia um zangado delegado, com um noivo conduzido sob a mira de uma arma para realizar o casamento com a noiva. Em encenações mais irreverentes, ela poderia surgir grávida, para o delírio da plateia ou. abandonava o noivo no altar e fugia com o trapezista.

Hora da quadrilha, “primeiras marcas ao centro”, iniciada por aqueles que ensaiaram exaustivamente ao longo das semanas anteriores. “Caminho da roça”, “Olha a cobra”. Qualquer oportunidade, a plateia poderia transformar o terreiro num grande baile, ao som daquelas músicas tradicionais, que certamente alguns vão lembrar, “Olha a chuva”, “é mentira”

“São João está dormindo

Não acorda não”

“São João me deixe, me deixe soltar meu balão

São João me disse que não”

“já escolhi, venha cá você

Venha dançar esse balancê”

Assim passavam nossas noites de junho. Santo Antônio, no dia 12, iniciando “os trabalhos”. Destaque especial para a festa de São João, “a noite mais fria e comprida do ano”, como repetiam os mais velhos, tornando verdadeira uma afirmativa atrasada alguns dias, pois tal fato ocorria na entrada do inverno no hemisfério sul. Não importava. Era noite de pular a fogueira, admirar as prendas em seus vestidos de chita colorida, olhar as estrelas disputando o brilho com os fogos de artifício.

No dia 29, as celebrações de São Pedro, o porteiro do céu, fechavam os festejos de junho. Por algum motivo, talvez falha da memória, era a festa mais sisuda, talvez pela despedida ou até mesmo pela seriedade demonstrada nas representações do santo, diferente de São João, muitas vezes um menino com seu carneiro ao colo.

02 Sao Joao 1 William Bittar: São João em nossas fogueiras da memória
São João no cordel
Acervo particular

Até mesmo as modas juninas tratavam de forma diferente aqueles santos, pois São João tinha sua capelinha de melão enquanto Pedro fugia com a noiva “na hora de ir pro altar”.

Apreciador confesso dessa manifestação da cultura popular, apenas apresento algumas lembranças das festas que vivenciei em pátios de escolas, terreiros de igrejas, quadras de clubes.

Espontaneamente, o Rio de Janeiro tornava-se um arraial junino, sem qualquer propaganda oficial, concurso de quadrilhas, disputas acirradas alimentadas por um mercado sempre ávido de lucros e patrocínios.

Aquelas eram as nossas festas, que ainda enchem de cores, cheiros e sons integrados todas as possíveis manifestações da memória.

Quem estava ali, talvez aprecie lembrar.

Para os demais, fragmentos para provocar a imaginação sobre o jeito que nós celebrávamos os santos de junho.

São João, São João, mantenha acesa a fogueira da memória em nossos corações!

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

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