A correria das grandes cidades, como o Rio de Janeiro, produz um efeito desumanizante que invisibiliza parcela fundamental e importante da população, mesmo estando nas mãos dela a nossa promessa de futuro. Refiro-me aos trabalhadores e trabalhadoras que vão às ruas para, debaixo de sol e de chuva, gerar renda para suas famílias através da coleta dos materiais recicláveis. Negligenciados pelas políticas públicas, os catadores e as catadoras são essenciais no sonho do desenvolvimento sustentável que tanto perseguimos. Não existe equação séria para qualquer meta de impacto ambiental que desconsidere o tamanho da contribuição deles na correta destinação dos resíduos sólidos. Mas, ainda assim, eles são mantidos nas sombras.
Cabe o adendo de que grande parte de quem executa a tarefa são as mulheres negras. Logo, a invisibilização deste trabalho reflete as desigualdades da sociedade, o que as coloca em posição de dupla vulnerabilidade. São elas as que mais sofrem com as dificuldades inerentes à coleta dos materiais recicláveis e também nas discriminações sofridas. Graças às visões distorcidas sobre gênero e raça, a contribuição delas é minimizada no debate sobre sustentabilidade. São elas que enfrentam as maiores dificuldades no acesso às oportunidades de trabalho e que sofrem com as maiores desigualdades salariais e de condições de trabalho. Assim, veem no lixo a única chance de sustento para suas famílias. É urgente reconhecer e valorizar um trabalho tão fundamental para todos nós para lhes garantir dignidade.
Sem o devido suporte, esses trabalhadores encaram condições desumanas de atividade, sem a mínima proteção, levando ao comprometimento de sua saúde e de sua segurança. São vidas humanas em perigo pela completa inação do Poder Público. Logo, é imperativa a adoção de medidas concretas que garantam o básico. Os galpões de cooperativas de reciclagem mostram o que é preciso ser feito, sendo grandes motores na geração de emprego e renda. Mesmo eles, no entanto, têm enfrentado inúmeras dificuldades para continuar operando por conta da falta de incentivo e de subsídios.
A luta dos catadores no Rio de Janeiro é especialmente árdua, uma vez que o repasse dos materiais recicláveis pela COMLURB é pequeno. Para piorar, a empresa tem permitido que particulares realizem coleta seletiva em total descumprimento da legislação vigente. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) prevê que as prefeituras priorizem as cooperativas de catadores para a gestão de resíduos. “O titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos priorizará a organização e o funcionamento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda, bem como sua contratação. A contratação prevista no § 1o é dispensável de licitação”, diz trecho da determinação.
A legislação ressalta a possibilidade de contratação de cooperativas sem licitação para que as cooperativas de catadores, compostas por pessoas de baixa renda que têm nela a única fonte de renda, não tenham de competir com grandes empresas. Mas, mesmo com a lei federal, a Comlurb precariza e restringe a atuação dos catadores. O cenário atual da classe é de extrema vulnerabilidade, com consequências diretas na sua subsistência e bem-estar. Gloria Cristina dos Santos, Coordenadora do Movimento Eu Sou Catador (MESC), resume assim o contexto atual: “A coleta seletiva precisa sair desse menos de 1% que é o percentual hoje. A Comlurb leva até as cooperativas material de menor valor comercial. Precisamos de contratação já”.
A nível estadual, vale destacar a Lei 8.151/2018 que institui o Sistema de Logística Reversa de Embalagens e Resíduos de Embalagens. Aos que não estão familiarizados com o tema, nada mais é do que a “lógica reversa”, definindo que as empresas têm responsabilidade de lidar com os resíduos gerados pelo consumo de seus produtos. O Rio de Janeiro, inclusive, é o único estado que tem uma lei estritamente para a Logística Reversa. Nela estão estabelecidas diretrizes para a gestão adequada das embalagens pós-consumo, incluindo a responsabilidade compartilhada entre a sociedade, o governo e as empresas. Mas na prática o que tem ocorrido é bem diferente. As empresas têm se omitido, dificultando que, ao final da vida útil, o produto seja coletado e reciclado. Resultado: mais poluição. A falta de transparência começa no órgão gestor, que não sabe nem precisar quantas empresas descumprem a lei. Aqui, faço minhas palavras a de Gloria Cristina dos Santos, Coordenadora do Movimento Eu Sou Catador (MESC): “Logística reversa de embalagens pós consumo sem catador é lixo. Embalagens tem nome e tem dono. Precisamos responsabilizar os donos”.
Além das empresas, é importante ressaltar o papel da sociedade civil nesse processo. Para isso, é necessário ações de educação ambiental para que a população se sensibilize sobre a importância da separação adequada do lixo. A conscientização sobre a disposição correta dos resíduos é um dos pilares para criar um sistema eficiente de reciclagem. Para além das toneladas de lixo que vão para os aterros sanitários, estamos falando da geração de renda para comunidades marginalizadas.
Construir um futuro mais sustentável inclui reconhecer e valorizar o trabalho dos catadores de materiais recicláveis. Eles são parte integrante e importante do ciclo de reciclagem e da economia circular. Logo, é imoral que permaneçam à margem da sociedade, sem o devido apoio, enquanto trabalham em condições adversas e perecem na pobreza. Eles precisam ter nome e voz nas políticas públicas e programas que promovam a formalização do trabalho, com acesso aos direitos trabalhistas e às oportunidades de educação e de capacitação, recebendo a dignidade que merecem e precisam.