Diferentemente da Constituição brasileira, que em seu preâmbulo invoca a proteção de Deus, a proposta de Constituição do Chile abre com a frase “Nós (no feminino e no masculino), o povo do Chile, formado por diversas nações, nos outorgamos livremente esta Constituição, acordada num processo participativo, paritário e democrático”. E já no Artigo 1 anuncia que o Chile é um Estado de direito social e democrático, e que é plurinacional, intercultural, regional e ecológico.
Por aí se vê que o novo texto está em dia com uma série de debates atuais, incorporando a interculturalidade e a ecologia. Também as questões de gênero e da comunidade LGBTQIA+ são atendidas. Assim, o texto indica que o Estado promove uma sociedade onde mulheres, homens, diversidades e dissidências sexuais e de gênero participem em condições de igualdade. Reconhece as diversas formas e expressões de famílias. Propõe que 50% dos cargos de todos os órgãos do Estado e empresas públicas devem ser ocupados por mulheres. E que essa prática deva ser incentivada no âmbito das empresas privadas.
Onze povos e nações indígenas do país são reconhecidos e suas línguas tornadas oficiais nas áreas em que habitam ou em que representem parcela importante da população. São reconhecidos também os seus direitos à autonomia, ao autogoverno, à cultura e cosmovisão próprios, às suas línguas, às suas medicinas tradicionais e aos seus territórios. A representação deles na Câmara de Deputadas e Deputados fica garantida por uma participação de no mínimo 20 das 154 cadeiras.
É interessante observar como são tratadas questões referentes ao meio ambiente, às cidades e à habitação. Além da definição do Chile como um Estado ecológico, a proposta de nova Constituição chilena inova ao reconhecer os direitos da natureza: “A natureza tem direito a que se respeite e proteja sua existência, a sua regeneração, a sua manutenção e a restauração de suas funções e equilíbrios dinâmicos, que compreendem os ciclos naturais, os ecossistemas e a biodiversidade”.
A nova Constituição garante a proteção de ecossistemas específicos, como geleiras e pântanos, Afirma ainda que toda pessoa tem direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, ao ar limpo, e ao acesso responsável e universal a montanhas, beiras de rios, mar praias, lagos, lagunas e pântanos. E propõe o fim de monopólios de recursos naturais (o atual mercado de água é privado).
Para a proteção da natureza e do meio ambiente, são elencados os seguintes princípios: a progressividade, ou seja, o não retrocesso, a precaução, a prevenção, a justiça ambiental, a solidariedade geracional, a responsabilidade e a ação climática justa. Com relação à crise climática e ecológica, o Estado deve adotar ações de prevenção, adaptação e mitigação dos riscos, das vulnerabilidades e dos efeitos. É criada a Defensoria da Natureza e o Estado deve fomentar a produção agropecuária ecologicamente sustentável.
A nova Carta afirma que o direito à cidade e ao território é um direito coletivo, voltado ao bem comum, e reconhece a função social e ecológica da propriedade. Assim toda pessoa tem o direito de habitar, produzir, usufruir e participar em cidades e assentamentos humanos livres de violência e em condições apropriadas para uma vida digna. É interessante notar que apenas a função social da propriedade é reconhecida na Constituição brasileira. O Estado chileno deverá também garantir a participação popular nos processos de planejamento territorial e nas políticas habitacionais.
Com relação à habitação, a nova Carta afirma que toda pessoa tem o direito a uma moradia digna e adequada e que o Estado poderá participar do projeto, da construção e da reabilitação da moradia, especialmente para as pessoas de menor poder aquisitivo. Essa proposta se assemelha à nossa Lei 11.888/2008, que propõe a assistência pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, infelizmente pouco aplicada. O texto chileno indica ainda que o Estado deverá administrar um Sistema Integrado de Terras Públicas, voltado para fins de interesse social.
A ocasião da elaboração de uma Constituição é interessante para se perceber como uma sociedade vê e deseja sua nação. A brasileira foi realizada sob o espectro da ditadura militar recém terminada, com constituintes do século XX. E depois disso veio sendo remendada ano a ano.
Em maio de 2021 o Chile elegeu uma Assembleia Constituinte. Assim, se encerraria um triste capítulo da sua história, com a substituição da Constituição outorgada pelo ditador Pinochet (1973-1990). Essa eleição, que trouxe muita esperança, se deu após manifestações de rua, em 2019, por mais igualdade e melhores condições de vida, e que envolveram milhares de pessoas. A nova Constituição foi redigida por um número paritário de homens e mulheres, com a reserva de 17 lugares para 10 povos indígenas do país.
Ela agora está pronta, mas corre riscos de não ser aprovada. Diferentemente do que ocorreu no Brasil, no Chile, após a elaboração do texto pelos constituintes, o mesmo será submetido a um plebiscito em 04 de setembro. Como as maiorias e consensos políticos mudam, a correlação de forças que elegeu os constituintes talvez já não mais exista. Sem a aprovação da Constituinte, o Chile corre o risco de mais instabilidade política. Seria desastroso para o país e uma pena a perda de um texto tão inovador.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.