- Por Matheus Campelo
Existe, e já quase esquecido por todos, na histórica sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, um misterioso quadro, de reduzidas proporções, e que nas palavras dos mais sábios não é representativo, exatamente, de “primor artístico”, mas sim, de algum “merecimento altamente archeológico”, por representar uma documentação gráfica das bênçãos que transbordam sobre o povo carioca. O quadro pendente na igreja de 1582 – a mais antiga do Centro – é uma daquelas histórias do Rio que o DIÁRIO é famoso por contar.
Bastante castigado pelo peso dos anos, o quadro – óleo sobre tela – nos projeta uma cena, composta por um ostensório (ou custódia) dourado, encimando uma tosca mesa de madeira, entre duas cortinas, no melhor estilo de nossa arte colonial de fins do século XVII, e princípios do século XVIII. É um das centenas de quadros com 200, 300 e até 400 anos que ornam as paredes da sede da irmandade da Misericórdia, dona do Hospital da Santa Casa.
Ao centro da hóstia sagrada, posta no ostensório, figura uma minúscula imagem de Nossa Senhora, em brilho e pose de salvação. Na parte inferior do quadro, e em letras muito apagadas, mas que outrora foram igualmente douradas como o ouro do ostensório pintado, se faz possível perceber a tímida – mas marcante – legenda:
“NO ANNO DE 1639 AOS 11 DE SETEMBRO NA DOMINGA INFRA OCTAVAM DA NATIVID.e DA SR.a DIA EM Q´ SE CELEBROU, A PRIM.a FESTA A N. S. DO BOMSUCESO ESTANDO O SANTISSIMO SACRAM.to DESENSERRADO APARECEU NA CUSTODIA A VIRGEM S. Na FR.a O ESTA PINTADA E VIRAO TRES SACERDOTES POR ESPACO DE HORA E MEYA ESTANDO A COMPLETAS, E FOY APROVADO ESTE MILAGRE;”
Trata-se, portanto, de uma das obras de arte mais expressivas de nossa cidade, vez que ela simboliza, e faz referência, à história do surgimento de um dos oragos mais antigos do país, enquanto também elucida parte considerável da história que permeia as nomenclaturas, e o próprio desenvolvimento da terra carioca. Um milagre carioca, como aquele célebre Milagre da Rua do Ouvidor, da igreja cuja imagem de mármore de Nossa Senhora, atingida por um tiro de canhão, caiu de 25 metros de altura, e, em vez de espatifar-se, quebrou apenas dois dedinhos.
Agora, que acontecimento terá sido esse – célebre – e que a pintura ilustra, mas do qual, incrivelmente, ninguém mais fala, ou ainda sequer relembra nos dias de hoje? É o grande autor e historiador José Vieira Fazenda quem nos reconta, na qualidade de antigo médico da Santa Casa, e um dos principais, e mais celebrados cronistas da nossa cidade do Rio de Janeiro, que vindo de Portugal para o porto carioca, entre os anos de 1637 ou “38”, o Padre Miguel da Costa, presbítero do hábito de São Padro, foi quem trouxe em sua companhia uma certa imagem de Nossa Senhora, “a quem havia imposto ou venerava com o título do Bom Sucesso”.
Logo que estabelecido na cidade, Padre Miguel depositou sua imagem na antiga Igreja da Misericórdia, como era então chamado o orago da Santa Casa, “com licença do provedor e irmãos d’aquella casa”, diretamente “na capella e altar de Nossa Senhora de Copacabana”, “aonde esteve alguns annos”. Pouca gente sabe que a Igreja do Bonsucesso no Largo da Misericórdia nem sempre teve este nome.
Muito devoto da Senhora do Bom Sucesso, a dedicação do Padre se popularizou entre antigos locais – moradores do Centro hoje Histórico, a ponto de se lhe organizarem a veneração da santíssima imagem com festejos e devoção estruturada em confraria, servindo o próprio Padre como seu procurador, e nada menos que seu tesoureiro.
Com o tempo – e as muitas esmolas que lhe doaram os fiéis – seus seguidores edificaram uma capela privativa, na antiga sacristia próxima “à capella mór” da primitiva Igreja da Misericórdia, para que o culto da Senhora do Bom Sucesso se desenvolvesse com toda a principalidade que merecia, dentro da igreja tombada que até hoje pertence à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia.
Vieira Fazenda, recorrendo-se a memórias ainda mais antigas, escritas por Frei Agostinho de Santa Maria, então relata que no “primeiro dia em que se festejou a Senhora (11 de Setembro de 1639), [e] estando o Sacramento exposto, foi vista a imagem da Virgem, na hóstia, por três respeitaveis sacerdotes” e que depois, “em uma novena, feita por occasião de grande sêcca”, a figura da santíssima virgem tornou a aparecer do mesmo modo que antes, renovando-se “esse facto extraordinario, atestado por frei Miguel de S. Francisco”.
Não é preciso dizer que esse acontecimento – um chamado Milagre Eucarístico – mudou inteiramente o Rio de Janeiro passado: foi ele, por exemplo, quem motivou os irmãos da Santa Casa a alterarem a devoção principal de seu templo, que depois de “da Misericórdia”, passou a ser em honra da Senhora do “Bonsucesso”. E assim o é até hoje.
O renomado historiador nascido em 1874 nos ensina que “do primeiro milagre”, “foi pintado um quadro que existia na sacristia da Misericórdia”, e isso, “ao tempo em que Frei Agostinho escreveu” sua obra, o “Sanctuario Marianno”. Assim, ficamos a saber, por Vieira, que esse misterioso retrato data de pelo menos 1713. Com mais de 300 anos, portanto!
Também por Vieira, e graças a sua fome de detalhes, também ficamos a saber que a velha pintura já passou por poucas e boas, e é uma sobrevivente: Vieira Fazenda, ao relembrar de sua existência, nos informa que ela chegou a desaparecer, até que foi encontrada, ao tempo seu relato (por volta de 1902), em lastimável “abandono”, “pelo chefe da secretaria” da Irmandade da Misericórdia, “o inolvidável Francisco de Sá, que a mandou restaurar e colocar no primitivo logar”.
O conceituado escritor ainda menciona que ele chegou a copiar o texto que “havia na parte inferior da pintura”, mas que em seus trabalhos, não reproduziu por “falta de espaço”. Vicissitudes do tempo do papel… hoje, ainda bem que temos o “online”.
Depois de reaparecido o quadro, pelas mãos de Francisco de Sá, Fazenda nos informa que o retrato desapareceu mais uma vez, “e ninguém [soube] o destino que levou”, até que ele novamente surge, para as páginas desta corriqueira lembrança, ainda pendurado, como que magicamente, na velha sacristia da Igreja do Bonsucesso, para ser achado às vésperas de um outro 11 de Setembro, o de 2024. E a foto dele vai abaixo:
Sobre a imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso, trazida pelo Padre Miguel da Costa, Fazenda nos ensina que em 20 de Setembro de 1652, por uma escritura lavrada no livro 1º do Tombo da Santa Casa, o juiz da Irmandade do Bom Sucesso, Jerônimo Barbalho Bezerra, decidiu entregar, definitivamente, junto de seus confrades, todos bens, e a própria imagem venerada, à Irmandade da Misericórdia, mas “com a condição” da Santa Casa “continuar a supprir os gastos e a festejar a padroeira do extincto sodalício”, o que foi feito e é feito até hoje pela secular irmandade católica que hoje tem quase 200 irmãos.
“Ainda em 1698, ocupava a Senhora do Bom Sucesso o primeiro altar do lado da Epistola”, dentro da ancestral Igreja da Misericórdia, e em “principios do seculo XVIII”, já “a antiga egreja havia perdido o [seu] antigo nome, e bem assim a rua da Misericordia era chamada rua da Egreja do Bom Sucesso, indo para S. José”, como nos diz Fazenda.
Com isso, a antiga devoção de Nossa Senhora da Misericórdia, tributada pelas centenas de Santas Casas tradicionalmente em todo o mundo, desde a fundação da primeira instituição do gênero, ainda em Lisboa, ao tempo do rei português D. Manuel, foi especialmente substituída no Rio de Janeiro, e para todo o sempre, tamanha a crença dos cariocas na proteção da Senhora do Bom Sucesso.
No compromisso – nome que se dá ao estatuto de uma irmandade católica – dos irmãos da Santa Casa do Rio, mesmo hoje, é obrigatória sua celebração anual, com o peso de “da mais importante” da Irmandade da Misericórdia, por ser Ela promotora das ações de graças da filantrópica e quadricentenária instituição, fundada pelo próprio São José de Anchieta.
Disse Frei Agostinho de Santa Maria que a atual imagem da Senhora do Bom Sucesso (como bem relatava Vieira Fazenda, já no começo do século XX), não era mais aquela que Frei Miguel da Costa trouxera ao Brasil. A antiga fora “substituida por outra egual pelo provedor e antigo governador Thomé Corrêa de Alvarenga, que levou a primeira para sua casa e colocou-a em oratorio particular”. Frei Agostinho esclarece então, que a referida imagem, da casa de Tomé de Alvarenga, nos idos do século XVIII passara para o “Oratorio particular de hum cavalheyro d’esta côrte (Lisboa)” e que o próprio Frei Agostinho a vira, sabendo que o dito cavalheiro, que não nomeia, “vindo do Rio o [livrara] a Senhora [do Bom Sucesso] de grande perigo”, e que ela assim “também [o fizera] ao governador Thomé Corrêa” – “o livrara de muytos”.
Fazenda confessa que não sabe como “fôra parar a Lisboa a imagem” milagrosa, “quando é certo ter fallecido no Rio de Janeiro Thomé Corrêa em 7 de Setembro de 1675”, sendo “enterrado, como pedira em testamento, na entrada da porta principal da egreja da Misericordia”.
O quadro está de volta, em seu devido lugar, para quem o queira ver, e é também certo que o espírito de Nossa Senhora do Bom Sucesso, independentemente de imagens, segue vivo nos corações dos irmãos da Misericórdia, para a graça e comunhão geral fluminense.
É também certo que no próximo Domingo, dia 15 de Setembro, a Irmandade da Misericórdia e sua tradicionalíssima Santa Casa celebrarão o festejo de sua padroeira, e protetora, Nossa Senhora do Bom Sucesso, como sempre o fizeram, todo o primeiro Domingo após o dia 8 de Setembro, na igreja própria do Bom Sucesso, com capelão.
Estão todos convidados, como continuação desse milagre eucarístico em pleno Rio de Janeiro, e perpetuado pela fé do povo, em nosso Bom Sucesso.
Que Nossa Senhora nos proteja, mais um ano.