Quem passa pela movimentada esquina da rua do Rosário com a avenida Rio Branco, nota um lindo templo católico barroco, fechado há anos e maltratado há décadas. Recentemente sua fachada foi “lambrecada” de branco na calada da noite, para esconder defeitos que são apontados por passantes diariamente. Sua lateral da avenida Rio Branco tem utilização comercial, com lojas que no momento se encontram desocupadas mas que já foram alugadas à famosas marcas do vestuário carioca. Trata-se da capela da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, uma associação de fiéis originalmente católicos fundada no longínquo ano de 1721 e que tem personalidade jurídica própria. É, portanto, uma igreja particular, e não pertence à Arquidiocese do Rio de Janeiro, embora supostamente seus integrantes sejam católicos. Ao menos um dia foram.
E parece que é justamente este o problema. Por ser independente, tem sua própria administração. As irmandades e ordens terceiras são associações religiosas leigas, que, apesar de – ao menos em seus estatutos – professarem a fé católica, são independentes da Igreja e não estão sob o comando direto da arquidiocese carioca. Elas são como associações de pessoas que não são padres nem freiras mas que mantinham igrejas particulares, cemitérios, hospitais e outras obras de caridade. E aí que entra um fato que não pode ser esquecido: além de ter um templo, muitas delas tem patrimônios milionários – algumas têm centenas de imóveis, doados por benfeitores no decorrer dos séculos. Assim, algumas acabaram se tornando meras administradoras de imóveis, sem compromisso algum com suas finalidades originais, e sem cuidado com seus templos, que são parte da história do Brasil. Outras, viraram verdadeiros feudos de um ou dois aproveitadores.
Segundo especialistas consultados pelo DIÁRIO, a maioria das diversas irmandades administra com cuidado e esmero seus bens e a(s) igreja(s) a ela vinculadas, como é o caso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, que tem prédios bem cuidados, e sua igreja está sempre tinindo e bem cuidada, sendo uma grande atração turística no Rio, assim como diversas outras, como a Irmandade de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores (da famosa igrejinha da Rua do Ouvidor), ou a Irmandade do Glorioso Patriarca São José (do templo de mesmo nome na rua São José). São mais de 40 irmandades, confrarias, e associações de fiéis na cidade, uma pequena fração delas passa por crises que por vezes são causadas por muito mais que má administração.
A igreja da Rua do Rosário, muito além de proprietária de todo um quarteirão entre a Rio Branco, a Miguel Couto e a Buenos Aires, tem um vasto patrimônio artístico, mas para bem além disso, um imenso patrimônio imobiliário, inclusive na valorizada região da Saara e na Zona Sul da cidade. A crise que atinge algumas irmandades passa pelo abandono das moradias no Centro do Rio: seus moradores frequentavam – e muito – as belas igrejas da antiga Capital do Império. Com a proibição da construção de residenciais na região, que durou dos anos 60 até o fim do século XX, rarearam os fiéis das igrejas do bairro. E, com isso também, o número de membros das irmandades. Em algum momento entre os anos 70 e 90, algumas sofreram um influxo de pessoas que se demonstraram mais interessadas em ser ajudado do que em ajudar. E, com o passar dos anos, estas pessoas chegaram a posições importantes em algumas destas confrarias. A partir de então, fecharam as portas ao ingresso de novos irmãos, e assim, foram tomando o controle, transformando certas instituições em verdadeiras caixas pretas.
Tudo isso criou um espaço propício para desvios de finalidade. Algumas dessas confrarias, que operam sob um estatuto com normas que definem o funcionamento e os direitos e deveres de seus membros, passaram a ser geridas de forma a garantir que os provedores, responsáveis pela administração, tivessem controle total sobre o patrimônio, especialmente diante da diminuição do número de confrades. Segundo uma reportagem do jornal O Globo, inúmeras denúncias que chegam à Arquidiocese do Rio indicam que especialmente que as irmandades da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte e da Venerável Irmandade do Glorioso Mártir São Braz, ambas sob o comando do mesmo clã – a família Rachid, se destacam por trocar a assistência coletiva por uma forma de caridade que beneficia apenas a família, promovendo a privatização das rendas e propriedades pertencentes aos irmãos, chegando a um ponto tão absurdo que abandonaram a Igreja à própria sorte. Um verdadeiro negócio de famiglia.
Documentos obtidos em cartórios revelam a transferência de pelo menos quatro apartamentos da Irmandade do Glorioso Mártir São Braz, localizados na Rua Carlos Góes 141, no Leblon, para Brígida Rachid José Pedro, a atual provedora da entidade. Segundo os registros, cada um dos imóveis custou à compradora cerca de R$ 250 mil em 2010. Segundo corretores da região, valia quase o quádruplo. Curiosamente, as escrituras são assinadas por Alexandre Rachid José Pedro, pai de Brígida e provedor na época da transação. Brígida assumiu a liderança da irmandade em 2012, dois anos após essa venda e um ano depois do falecimento de seu pai. Seus irmãos e até mesmo sua companheira – sim, ela está na segunda união homoafetiva – também estariam ativos na destruição dos objetivos da irmandade, tanto que garantiu à histórica associação o apelido de ‘Nossa Senhora dos Rachid’. “Só os pedidos deles são atendidos. É quase como uma nova religião”, explica um confrade de outra irmandade que prefere manter-se em sigilo. E completa: “Estão fazendo a limpa“. Um camelô que tem ponto ao lado da igreja da Boa Morte disse à reportagem, assustado: “A Brígida anda armada, cuidado com ela“. Famiglia...
Há também mais denúncias contra a provedora, de Condomínios de Escritórios onde a irmandade possui bens; ela teria se tornado síndica e, segundo os condomínios, teria “aprontado” algumas irregularidades na administração deles, que assumiu em algum momento por conta de ser a confraria co-proprietária. O Ministério Público e a Polícia já investigam grande parte das denúncias. Informações de religiosos dão conta que a Arquidiocese acompanharia de perto as denúncias e o desenvolver dos acontecimentos.
Diferentemente de outras irmandades, a Glorioso Mártir não possui um templo próprio; há apenas um lindo e histórico altar dedicado a ela na Igreja de São Bento, situada no centro da cidade, desde o século XVII. Em contrapartida, a Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, que também está sob a gestão da família Rachid, é proprietária de um valioso patrimônio histórico: a fantástica igreja localizada na esquina da Rua do Rosário com a Avenida Rio Branco, erguida no século XIX, que abriga um altar-mor com talha rococó assinada por ninguém menos que o Mestre Valentim, além de possuir belíssimos lampadários de prata e obras dos Evangelistas de autores anônimos. A irmandade possui obras de arte sacra de altíssimo nível.
Os recursos obtidos com o aluguel de imóveis, que incluem apartamentos, lojas e salas em áreas das mais valorizadas da cidade, são utilizados para pagar salários polpudos à provedora, aos irmãos de Brígida — Aloísio Rachid José Pedro, que é vigário do Culto da Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, e Alexandre Rachid José Pedro Júnior, que atua como tesoureiro em ambas it as ordens —, além de sua atual companheira de vida, Silvia Helena Monteiro, que já ocupou o cargos de vice-juíza e procuradora também das duas entidades. Brígida e Silvia são as únicas sócias da Support Serviços Empresariais, empresa criada para administrar os bens das irmandades. Brígida é uma conhecida organista – toca órgãos sacros. Só na Rio Branco, a igreja tem três lojas vazias.
As peripécias jurídicas da irmandade são quase que uma novela à parte. Um ex-provedor gastava fortunas com “massagistas”, e respondeu a um processo pelo desaparecimento de mais de um milhão de reais. Depois, a administração dos Rachid perdoou-o, se arrependendo depois – alegando fraudes e falsificações numa peça jurídica tão louca quanto divertida, em que a advogada se revira em elogios à nova provedora.
Mas se infelizmente quem não é membro tem pouco a reclamar sobre a grande festa bufa que os Rachid estariam realizando na irmandade histórica, a igreja – o templo – é um Patrimônio Histórico Nacional, tombado pelo Iphan Federal em 1938. E como todo patrimônio histórico tombado, deve permanecer intocado salvo com a autorização do órgão. Inclusive, é proibido vender ou de qualquer forma retirar objetos sacros e enfeites, talhas e partes da igreja. Cada castiçal, cada lampadário, cada cálice, patena, âmbula ou sacrário são partes integrantes do tombamento e nem os próprios responsáveis legais da igreja tem poder para ceder sequer um alfinete. Qualquer bem que se encontrava na capela quando de seu tombamento, deve ser mantido lá, sob pena de investigação federal. Foi assim que recentemente a Igreja da Lapa dos Mercadores conseguiu recuperar na afamada antiquária Dagmar Saboya, em Copacabana, peças sumidas de seu acervo há décadas. Foram apreendidas pela Polícia Federal.
Da mesma forma, o cuidado com o templo, que hoje se encontra totalmente abandonado e fechado, é obrigatório. Ainda mais quando se trata de uma Ordem Terceira milionária e proprietária de uma fortuna em imóveis de todo tipo. Estes imóveis foram doados justamente para servir de sustento ao templo para que este jamais perdesse sua dignidade. Quem visita o local – fechado há anos – só observa o caos que se tornou a parede lateral da igreja, assim como sua fachada, tomada de pichações e sujeira, assim como tomada pela camelotagem ilegal. A dilapidação do patrimônio da irmandade não é nada perto do que significa a perda, para o Rio de Janeiro, de um de seus monumentos religiosos mais importantes, negligenciado há anos.
Histórico: Um Passado Também Turbulento
Ao tratar da cronologia da Venerável Ordem Terceirada Conceição e Boa Morte da cidade do Rio de Janeiro, Moreira de Azevedo, um dos mais insignes memorialistas da urbe carioca, já nos idos de 1877, assim principiava sua exposição:
“Não é raro vir sentar-se a discórdia nos umbrais da igreja, aparecer a zizania entre aquelles que, congregados pelos laços da religião, fórmão essas corporações, confrarias, irmandades cujos membros se denominão christãos. O ciúme, o ódio, a cobiça e outras paixões dividem muitas vezes áquelles que, entregues às cousas do culto, se esquecem todavia da excellencia da doutrina de Christoque recommenda a mansidão do cordeiro, a misericordiasem fim, a paz e concordia, a paciencia e resignação. E quando penetrão a desharmonia e a desordem nas corporações religiosas, sofrem a moral e a religião; o culto decahe, a fé esfria, e a casa de Deus sem paz e sem ordem dá ao mundo um espectaculo triste”.
?O lamento do autor, verdadeiro aviso, prevenia e antecipava os leitores das execráveis cenas que eles acompanhariam, linhas seguintes. Adiantava o enredo, que é dos mais pitorescos de toda a experiência carioca, e queentretanto tenha descambado na situação presente, pelo menos demonstra que nem mesmo com as mais vexantes velhacarias, o culto à Nossa Senhora por essas duas irmandades, antes independentes, jamais se interrompeu (como hoje ocorre, infelizmente, desde que se tornaram um negócio de famiglia).
?Eram desassociadas as antiquíssimas Irmandades de Nossa Senhora da Conceição, e da Assunção e Boa Morte.
?Aproximaram-se, ambas, em decorrência de brigas: cindidos, temporariamente, os irmãos da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, “por contendas entre si e os religiosos”, um grupo de devotos da mesma ordem estabeleceu-se em uma ermida que já existia na Rua do Rosário, sob a liderança de Francisco de Seixas da Fonseca, Ministro da Penitência.
Um alvará régio de 12/03/1721, autorizou a permanência dos irmãos franciscanos na dita ermida, até que, no dia 04/09/1725, fez-se a paz entre os terceiros, e o partido que o ocupou a ermida foi ordenado retornar ao morro de Santo Antônio, por carta régia de 20/12 do mesmo ano.
?Na ermida, ficaram dois religiosos italianos, mas era tão “pequeno e mal collocado” o espaço, que eles logo se mudaram dali, legando à antiga habitação o nome de do“Hospício”.
?Enquanto isso, havia, sediada na hoje desaparecida Igreja de São Sebastião do Morro do Castelo, uma irmandade devotada a Nossa Senhora da Conceição, composta por homens pardos e libertos, e que fora fundada por Antônio Pinheiro, Jorge de Castro, Eugênio Ribeiro da Costa, Antônio Dutra e Francisco Coelho de Brito, cujo compromisso foi aprovado no dia 19/07/1700.
?Achando-se bastante arruinada a velha catedral de São Sebastião, o bispo da época mandou que a Sé se transferisse para outro templo. Com isso, os irmãos de Nossa Senhora da Conceição recearam não encontrar lugarna nova catedral que escolhessem, pelo que resolveram adquirir, da Ordem Terceira da Penitência, a velha ermida do Hospício, a qual, então desocupada, foi vendida com “todas as alfaias, e uma casa annexa, (…) pela quantia de 3:160$000”, por escritura pública de 09/01/1729.
?Sem recursos, a vacilante Conceição, quase 80 anos depois, sequer havia quitado metade dívida que contraiu, para pagamento da ermida que, anos antes, servira de capítulo na discórdia que acendeu entre os irmãos de São Francisco. Por isso, a Penitência executou a Irmandade da Conceição em 1:978$000 do valor acordado, tendo, inclusive, penhorado-lhe uma casa, no ano de 1801. Foi somente em 10/09/1807, e após a constrição dessa casa, que a Conceição obteve a quitação geral, e a propriedade plena da ermida do Hospício.
Nesse tempo, já existia a Irmandade da Assunção e Boa Morte, fundada no ano de 1663, também por homens pardos, e que desde sempre se alojara no Convento dos Carmelitas.
De lá, a Assunção e Boa Morte só saiu, para seinstalar na ermida do Hospício, onde então se já encontrava, à data da quitação geral recebida pela Irmandade da Conceição. Moreira de Azevedo é quem,novamente registra, que a história evolui, outra vez alimentada pela força dos conflitos.
Diz o cronista que “achando-se alguns irmãos da Senhora da Assumpção e Boa-Morte em desharmonia com os frades, resolverão deixar a igreja do convento, mas combinarão em segredo o seu plano” – “começarão a ocultar alguma prata sob o pretexto de leva-la a concerto, e esperarão occasião azada para arrebatar a imagem [de Nossa Senhora]; de feito, no dia da procissão da Virgem, percorreu a imagem diversas ruas, e ao chegar à da Quitanda, esquina da do Rozario, em vez de descerem para dirigir[em]-se ao convento, apressarão os irmãos o passo, subirão pela rua do Rozario e, penetrando na ermida da Conceição, fecharão as portas. Conta-se que houve tumulto e contenda, velas quebradas, habitos rôtos intervindo a força armada, mas imagem ficou”, finaliza.
Deram-se tais fatos no ano de 1734, e em 19/12 desse mesmo ano, as duas irmandades juntaram-se. Os irmãos da Boa Morte que ficaram com os carmelitas constituíram nova irmandade, que se chamou de “Nossa Senhora da Assunção”, ficando o nome de “Boa Morte” reservado ao partido que se ausentara do carmelo e fora para o “Hospício”.
Juntas, a Conceição e Boa Morte floresceram. Em 25/03/1735, lançaram ambas a pedra fundamental do elegante templo que planejaram construir no lugar da antiga ermida. Para tanto, contrataram o brigadeiro Alpoim, para traçar o edifício, que ainda hoje existe, e é a Igreja da Venerável Ordem.
Mas paz reinou pouco: nascidas de ventre de tubarão, “a discórdia e o ciúme separarão as duas corporações; as obras cessarão, o culto diminuiu, e as duas irmandades cahirão em estado de perturbação e regresso, proprio de dous partidos que lutão. Um motivo frívolo originava uma contenda violenta; não se discutia, disputava-se; não se deliberava, guerrava-se; uma confraria queria subrepujar a outra, destrui-la, aniquila-la para ficar só!”, rememorava Moreira de Azevedo.
Apreciavam o sabor da batalha, e portavam-se tal como os Montéquios e Capuletos, um antigo escrivão o diria. “À irmandade da Conceição (…) Felix Martins Rates [deixara] um orgão; e por serem comuns os bens, quiz a da Boa-Morte usar do instrumento, mas os irmãos da Conceição negavão-lhe as chaves; [a Boa Morte] requereu ao poder competente, que permittio se arrombasse o orgão, se as chaves não fossem entregues; em 10 de abril de 1791, na occasião da missa da Boa-Morte, comparecerão irmãos seguidos de um alcaide, exigirão as chaves, levantarão-se contendas, mas, aberto o orgão, celebrou-se a missa.”
Em 1761, 30 anos antes, os irmãos de Nossa Senhora da Boa Morte suplicaram ao Rei D. José, ordem para que o provedor das capelas do Rio de Janeiro mandasse averiguar nos livros da irmandade, “situada na igreja de Nossa Senhora da Conceição do Hospício dos Homens Pardos”, se eles “teriam se apercebido que os seus irmãos libertos estariam utilizando o dinheiro da Irmandade em proveito próprio”.
“Pertencia á irmandade da Conceição o sino grande da torre, o qual foi recusado à da Boa-Morte, que teve de comprar o sino chamado Braga, que pertencera à igreja do Rosario, quando servira de sé”, prossegue Moreira. “Na festa da purificação da Virgem conservavão as duas irmandades o Sacramento em sacrário para distribui-lo aos fieis; e querendo celebrar e dar communhão antes que a irmandade da Conceição, dirigirão-se os irmãos da Boa-Morte à igreja, às 3 horas da manhã do dia [02/02/1798], e apezar de acharem o altar preparado para a outra confraria e com o competente pavilhão, arrearão este, e hastearão o seu; apresentou-se o thesoureiro da irmandade da Conceição para retirar do altar uma toalha, mas um irmão da Boa-Morte oppoz-se, e com a açucena de um castiçal ferio-o; houve tumulto, interrompeu-se o acto religioso, fechou-se a igreja, e o vigário geral Villas-Boas condemnou o sacrílego em 20$000, e excomungou-o”.
“Houve contendas sobre a construcção das catacumbas; os da Conceição não querião ceder o terreno do lado da rua dos Hospicio, os da Boa-Morte não querião aceitar o terreno do lado da rua do Rosadio, porque consturida a torre, ficaria reduzido”. “Uma das irmandades guardava as chaves da igreja em certos mezes, a outra em outro; e se acontecia uma delas necessitar das chaves em mezes contrarios, negava-se a outra, e tinhão-se de arrombar as portas”. Era uma luta sem tréguas.
Em 30/01/1816, Roma confirmou o diploma do breve apostólico que elevava a Irmandade da Conceição à Ordem Terceira. Após algumas tentativas, e continuando a luta entre as corporações, no dia 09/03/1820, apresentou-se proposta de reunião das duas confrarias. “[D]epois de animada discussão por 48 horas, foi aprovada [a fusão]”, que por segurança, lavrou-se em “escriptura de notas do livro 171, no cartório do tabellião Joaquim José de Castro”, passando ambas as congregações, finalmente, a constituírem uma só, sob a denominação atual de Ordem Terceira da Conceição e Boa Morte.
Nas peças de prata, trabalhou José de Oliveira Coutinho, experiente ourives da Corte, e reinaugurada a Igreja, benzeu-a o Bispo Conde de Irajá, em 04/12/1853. Na ocasião, as portas do templo foram novamente abertas, e antes que o bispo as tivesse empurrado, retorquiu o irmão da Conceição e Boa Morte, José Maria dos Reis, que tendo ele próprio as fechado, para as obras, era ele quem as devia abrir: “Não abra, eu a fechei, eu quero abril-a”.
Em 03/04/1820, houve “solemne festividade em louvor da fusão”, fato que ensejou a preparação de um novo compromisso, aprovado em 03/12/1830, e novas obras no templo. Encarregou-se a Manuel Francisco dos Santos Deveza de vestir a Igreja de talha, que harmonizou seu trabalho com o retábulo do altar-mor, previamente executado por ninguém menos do que próprio o Mestre Valentim.
Assim pudesse, que atualmente tenha cerrado a Igreja da Boa Morte, seguir desse exemplo de um irmão do passado, e então abrisse, outra vez, para o povo do Rio.
Nos altares desse majestoso orago veneram-se as imagens de São Miguel, São José, São Francisco de Paula e de Nossa Senhoras da Assunção, do Socorro e Sant’Ana. Sob o zimbório, estão as capelas das Senhoras das Dores, da Boa Morte e a do Cristo Morto. Pertence ao altar-mor as imagens da Conceição e de Cristo, que veio a substituir a da Boa Morte que ali existia.
Na sacristia, também existe outro altar da Conceição e Boa Morte. A capela do noviciado dessa igreja foi edificada sob a direção de Antônio de Pádua e Castro, também responsável pela célebre Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores. Possui a Igreja da Venerável Ordem Terceira da Conceição e Boa Morte alguns retratos de seus beneméritos, corretores, de boa fatura. Também é detentora de dois magníficos painéis, dos melhores trabalhos representativos de nossa arte colonial: o primeiro, figurando Nossa Senhora da Conceição, de autoria do mestre Raimundo da Costa e Silva, o segundo, pintado por Leandro Joaquim, representando a Senhora da Boa Morte.
Os irmãos da Conceição e Boa Morte usavam hábitos talares de lã com túnica branca e capa azul. Em 1847 passaram a admitir túnica, capa e cordão pretos, e escapulário azul, tendo ao peito as iniciais “C. B. M.”.
Histórico da Irmandade de São Brás do Rio de Janeiro; Outra, e Ainda Mais Antiga Irmandade de Homens Pardos
?Anciã, e testemunha da formação do Rio, a Irmandade de São Brás remonta aos anos de 1648 a 1652.
Devoção de altar, não possui seu próprio templo. Aliás, nunca o erigiu. A Irmandade de São Brás retroage ao tempo em que os devotos se se reuniam, e constituíam congregações, confrarias ou irmandades para venerar santos de sua predileção, no seio de um orago maior, costume e tradição praticamente extinto, não só no Rio como no Brasil inteiro, e reflexo do passado colonial luso-brasileiro.
A irmandade venera São Brás, médico, protetor da garganta, e foi fundada também por homens pardos, quando o Rio de Janeiro ainda não contava 100 anos. Portanto, ela representa uma das mais antigas instituições, ainda em atividade, fundada por iniciativa de pessoas mestiças no país. É, sem dúvida, um documento vivo da história brasileira, e retrato de nossas práticas religiosas ancestrais.
Em 1670, e com nada menos que 18 anos de existência, a Irmandade se organizou, e conseguiu angariar recursos bastantes para iniciar a construção de uma capela. Nesse ano, os irmãos de São Brás concertaram com o Mosteiro de São Bento e adquiriram um espaço no interior de sua nave, pelo preço de 300$000. Dizia a escritura, que o valor, conquanto parecesse baixo, era aceitável, “em razão de serem os compradores pobres”. O intuito da venda, também era o de fortalecer a fé católica entre os primitivos povoadores cariocas, eis que a escritura igualmente registrou, como condição do negócio e de seu vantajoso preço, que venda também era feita “só afim de que [os irmãos de São Brás] com mais fervor continu[ss]em de servir a Deus e ao dito Santo”.
Significou a Irmandade de São Brás um marco de reconhecimento e distinção de uma antes marginalizada parcela da população vivente no Brasil. Conviver no Mosteiro de São Bento, e possuir espaço de oração privado, garantiu aos devotos de São Brás uma posição diferenciada na sociedade carioca.
?Vieira Fazenda, referindo-se aos pardos-livres, e a importância conquistada pelos irmãos de São Brás, dada a notabilidade de suas práticas religiosas, disse que eles eram “conhecidos por mulatos de capote”, e que “já em 1698 gosavam de alguma importancia”, tendo “comprado aos religiosos de S. Bento a posse do altar de S. Braz, fundando uma confraria”.
?A aquisição da capela de São Brás, portanto, exprimiu uma conquista social para os devotos do Santo, e que também serviu de representação popular, extensiva àcomunidade parda como um todo, no Rio de Janeiro colônia. A designação dos homens pardos livres por pessoas que ostentavam o “capote”, bem poderia referir à maneira singular com que esse grupo se destacava, trajando roupas, casacas, ou outras vestes longas, indicativas de ascensão social, ou então de suas funções privilegiadas na prática litúrgica: muitas confrarias e irmandades, mesmo hoje, particularizam seus membros com vestes especiais, típicas e diferenciada – as opas -, sinal não menos de distinção, sobretudo nos tempos de antanho.
?Não se descurou a Irmandade de São Brás de seus trabalhos mais humildes, contudo. Ainda que triunfante,em 1783, o juiz e os irmãos de sua mesa gestora solicitaram diretamente à Rainha D. Maria I, provisão e licença especial, para que os devotos de São Brás pudessem pedir esmolas pelas ruas do Rio. Tudo, para amanutenção do culto, e o melhor prosseguimento dos trabalhos dos irmãos já idos.
Até hoje, existe a capela de São Brás no interior da Igreja de Nossa Senhora de Monserrat, do Mosteiro.
Jaz particularmente esquecida, para quem ali está, há nada menos que 354 anos, e contando.