Chega ao fim uma das séries mais impactantes e perturbadoras da televisão contemporânea: O Conto da Aia. Baseada no livro The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, a série adaptou e expandiu o universo distópico criado pela autora, explorando com profundidade as engrenagens de um regime teocrático e misógino.
Ao longo de suas temporadas, acompanhamos a trajetória de June Osborne, que, em Gilead, recebe o nome de Offred (“of Fred”, ou seja, “do Fred”, o comandante a quem ela é atribuída).
O Conto da Aia se passa em um futuro autoritário, onde um regime teocrático e patriarcal assume o poder após o colapso ambiental e político de um país anteriormente democrático. A série apresenta um Estado teocrático totalitário que utiliza a religião como ferramenta de dominação, instaurando uma sociedade misógina, na qual as mulheres são privadas de seus direitos mais básicos.
Esse regime enfrenta uma grave crise de infertilidade feminina, causada por fatores ambientais e sociais, o que levou à criação das aias — mulheres forçadas a servir como reprodutoras para manter a continuidade da sociedade de Gilead.
No centro da narrativa está June, uma mulher forçada a servir como “Serva” – uma casta de mulheres férteis destinadas exclusivamente à reprodução para as famílias da elite governante. O governo justifica essa estrutura com interpretações fundamentalistas de textos religiosos, pregando que as mulheres existem para obedecer, procriar e servir aos homens.
“Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós estarmos sozinhas com os Comandantes. Somos para fins de procriação: não somos concubinas, garotas gueixas, cortesãs. Pelo contrário: tudo o que era possível foi feito para nos distanciar dessa categoria. Presume-se que nada há de ser divertido a nosso respeito, nenhum espaço para que luxúrias secretas floresçam é permitido; nem quaisquer favores devem ser obtidos por persuasão, por eles ou por nós, não devem existir quaisquer oportunidades ou atividades que possam dar ensejo a amor. Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes. (ATWOOD, Margareth. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. P. 165.)
Ao longo da trama, June desafia o sistema por meio de pequenos atos de resistência, que vão se acumulando até provocar rachaduras no regime. A série revela o sofrimento psicológico e físico imposto às mulheres, mostrando como a teocracia tenta apagar suas identidades, controlar seus corpos e silenciar suas vozes.
Além da crítica direta à misoginia institucionalizada, O Conto da Aia expõe como a religião pode ser distorcida para legitimar opressões e garantir o poder de poucos sobre muitos. A produção é um alerta sobre os perigos do autoritarismo, da intolerância e do uso político da fé para subjugar mulheres e grupos marginalizados.
O termo “aia” é uma tradução do inglês handmaid, que significa “serva” ou “criada” — uma mulher designada para servir como reprodutora no regime de Gilead. Ou seja. “Aia” é o substantivo comum, referente à função das mulheres sob o regime (assim como “Marta” ou “Esposa” são categorias sociais em Gilead).
N’O Conto da Aia, Gilead é o nome da república teocrática e totalitária que toma o lugar dos Estados Unidos após um golpe de Estado liderado por fundamentalistas religiosos.
Gilead é uma sociedade distópica construída com base em interpretações extremistas da Bíblia, especialmente do Antigo Testamento. A justificativa ideológica para a repressão vem de um trecho bíblico do livro de Gênesis, onde Raquel, estéril, entrega sua serva Bila a seu marido Jacó para que ela conceba filhos em seu lugar. Esse trecho serve de base para o papel das aias, mulheres férteis escravizadas para reprodução.
“Gênesis 30
“30 Raquel, vendo que era estéril, teve inveja da irmã. “Dá-me filhos, se não morro”, disse a Jacob. 2 Este teve de lhe responder, contrariado: “Eu não estou no lugar de Deus. Só ele sabe por que te impediu de ter filhos!”
3 Então Raquel disse-lhe: “Toma a minha criada Bila. Os filhos que ela tiver serão meus.” 4 Deu-lhe pois Bila por mulher, 5 a qual ficou grávida e lhe deu um filho. 6 Raquel chamou-lhe Dan (fazer justiça), “Porque”, disse ela, “Deus fez-me justiça, ouvindo o meu pedido e dando-me um filho.” 7 Bila, criada de Raquel, tornou a conceber e a dar a Jacob outro filho. 8 Raquel deu-lhe o nome de Naftali (lutar): “Lutei com a minha irmã e ganhei!””
As características principais do regime de Gilead são as seguintes:
• Teocracia militarizada: o governo é controlado por um grupo de homens chamados “Comandantes”, que alegam estar cumprindo a vontade de Deus.
• Supressão de direitos: mulheres são privadas de qualquer autonomia. Elas não podem ler, trabalhar, possuir bens ou sequer escolher com quem se relacionar.
• Divisão rígida de papéis: mulheres são classificadas em castas (aias, esposas, martas, tias) e treinadas para obedecer e servir.
• Vigilância constante: há espiões por todos os lados, e qualquer sinal de desvio pode resultar em tortura, mutilação ou execução.
• Controle da natalidade invertido: a fertilidade se torna uma questão de Estado. Como o mundo enfrenta uma crise de infertilidade, mulheres férteis se tornam propriedades reprodutivas.
• Guerra constante contra inimigos externos como pretexto para sustentar o medo, justificar a repressão interna e manter o controle absoluto da população: uma das características centrais do regime de Gilead é a guerra constante contra inimigos externos e internos, pouco identificados, mas sempre presentes. O conflito serve como pano de fundo para justificar a existência de um Estado militarizado, hierárquico e opressor. Ao manter a população em constante estado de alerta, o governo fortalece sua autoridade e reprime qualquer forma de dissidência, rotulando opositores como traidores ou cúmplices do inimigo.
A guerra também permite o isolamento diplomático seletivo, apresentado como um “escudo moral” contra o mundo exterior, descrito como decadente e corrupto. Internamente, o medo da guerra reforça a doutrinação religiosa, estimula o nacionalismo/patriotismo e serve de desculpa para o controle absoluto sobre o corpo e a vida das mulheres. Viúvas são exaltadas como esposas de mártires; crianças são treinadas para servir à causa; e a resistência, quando surge, é tratada como terrorismo.
Margaret Atwood utiliza a guerra como metáfora dos regimes autoritários que, ao longo da história, manipularam ameaças externas para justificar abusos internos. Gilead é menos um campo de batalha e mais uma prisão construída com o medo. Assim, a guerra invisível se torna uma arma poderosa: mantém o povo com medo — e, por isso, obediente.
Atwood declarou que nada do que aparece em Gilead foi inventado: todos os elementos do regime foram inspirados por práticas reais — religiosas, políticas ou culturais — que existiram ou ainda existem em diferentes partes do mundo. Isso torna a distopia de Gilead ainda mais assustadora, porque está sempre à espreita da realidade.
June Osborne é um símbolo de resistência feminina em meio à barbárie institucionalizada.
E a última temporada encerrará um ciclo com dor, esperança e redenção.
A sexta e última temporada de “The Handmaid’s Tale” (O Conto da Aia) está programada para estrear no Brasil em 9 de abril de 2025, exclusivamente no serviço de streaming Paramount+.
As temporadas anteriores da série estão disponíveis em diversas plataformas de streaming, incluindo Disney+, Paramount+, Globoplay e Amazon Prime Video.
Assista no sítio abaixo o trailer oficial da temporada final:
O vídeo acima está em inglês, mas quem tiver dificuldade com o idioma pode ativar as legendas automáticas do YouTube e selecionar a opção de tradução para o português.
Esse trailer destaca a intensificação da resistência contra o regime opressor de Gilead. A protagonista, June Osborne (interpretada por Elisabeth Moss), conclama: “Levantem-se e lutem por sua liberdade! Vamos usar todos os nossos aliados, todos e qualquer um que odeie Gilead, para finalmente declarar: Chega.”
Os três primeiros episódios da temporada final serão lançados simultaneamente na data de estreia, com novos episódios sendo disponibilizados semanalmente até o desfecho da série, previsto para 27 de maio de 2025.
Veja abaixo um ressumo das temporadas dessa série:
1ª Temporada – A construção do pesadelo (10 episódios em 2017)
A estreia da série mergulha os espectadores no terror do regime de Gilead, uma teocracia fundamentalista que tomou o poder após uma catástrofe ambiental e social. Mulheres férteis são transformadas em “aias”, obrigadas a engravidar para casais da elite infértil. June, separada de sua filha e de seu marido, é designada como serva do Comandante Waterford. A temporada retrata com crueza a repressão, os rituais de estupro institucionalizado, a lavagem cerebral e os castigos físicos. O foco está na desumanização sistemática, mas também no nascimento da resistência.
2ª Temporada – Fuga e enfrentamento (13 episódios em 2018)
A opressão se aprofunda, mas também os atos de rebeldia. June tenta fugir, enfrenta castigos brutais, mas se recusa a ser apenas uma vítima. A temporada amplia o universo de Gilead, mostrando as colônias tóxicas e a diplomacia internacional em torno do regime. June passa a articular pequenos gestos de insubordinação. O arco termina com sua escolha controversa de não fugir quando tem a chance, para tentar resgatar sua filha de dentro do sistema.
3ª Temporada – O embrião da revolução (13 episódios em 2019)
June deixa de ser apenas uma sobrevivente e passa a agir como articuladora da resistência. A série mostra fissuras no sistema: comandantes corruptos, esposas insatisfeitas, a complexidade das “Martas” (empregadas domésticas que se tornam cúmplices da causa). A fuga de dezenas de crianças no final da temporada, orquestrada por June e outras mulheres, é um dos pontos altos da série – uma ferida aberta no regime de Gilead, e um grito de alerta para o mundo exterior.
4ª Temporada – Consequências e retaliação (10 episódios em 2021)
A temporada é marcada pelo confronto direto. June consegue fugir para o Canadá, mas carrega o trauma de tudo que viveu. Ao mesmo tempo, Gilead pressiona internacionalmente para manter sua fachada de estabilidade. A série discute temas como justiça, trauma, memória e impunidade. June luta para que os comandantes e cúmplices do regime sejam responsabilizados, mas enfrenta a indiferença diplomática e a politização do sofrimento. A temporada termina com um ato brutal de vingança que questiona até onde a vítima pode ir sem se tornar algo semelhante ao que combateu.
5ª Temporada – Rachaduras internas (10 episódios em 2022)
A penúltima temporada mostra a decadência interna de Gilead. Disputas entre comandantes, revoltas em cidades periféricas e um povo exausto de viver sob vigilância. June, agora no Canadá, torna-se símbolo político involuntário. A série aborda o exílio, o luto e o perigo do esquecimento. A radicalização de alguns personagens, o cinismo de outros e a tensão entre justiça e vingança tornam a temporada mais política e psicológica.
6ª Temporada – O adeus necessário (10 episódios em 2025)
Na sexta e última temporada de The Handmaid’s Tale, June lidera uma revolta contra Gilead, enquanto o regime enfrenta tensões crescentes com o Canadá. Em fuga, ela precisa lidar com a incerteza sobre Luke, que pode ser preso, e sua complexa relação com Serena. Enquanto Moira se une à resistência, Serena tenta reformar Gilead, e Nick encara desafios morais. Este capítulo final traz uma luta intensa por justiça, liberdade e a sobrevivência da esperança.
Finalizando, podemos concluir afirmando que O Conto da Aia não é apenas uma distopia visualmente marcante. É uma crítica contundente ao uso da religião como instrumento de opressão, à misoginia institucionalizada e à banalização do sofrimento feminino. A série nos lembra que regimes autoritários não surgem do nada – eles são construídos passo a passo, com omissão, cumplicidade e medo. Aia é mais do que um nome: é símbolo de resistência, de persistência e de esperança. Ao acompanharmos sua jornada, somos forçados a confrontar as estruturas que sustentam a desigualdade e a violência de gênero ainda hoje