O futebol brasileiro amanheceu mais triste nesta terça-feira, 8 de abril de 2025. Faleceu, aos 87 anos, Haílton Corrêa de Arruda, o eterno Manga, ídolo incontestável do Botafogo e da Seleção Brasileira, e um dos maiores goleiros da história do nosso futebol. Conhecido por suas defesas inacreditáveis e seus dedos tortos, marcas da bravura em campo, Manga partiu deixando um legado monumental.
Natural de São José da Coroa Grande, Pernambuco, nascido em 26 de abril de 1937, Manga começou sua trajetória no Sport Club do Recife, onde se destacou já nos juniores, ao conquistar o Campeonato Pernambucano de 1954 sem sofrer um gol sequer. Foi promovido ao time profissional por Gentil Cardoso e, após boas atuações em uma excursão internacional do Sport, se firmou como titular e campeão pernambucano de 1958.
Aos 22 anos, em 1959, transferiu-se para o Botafogo, onde viveria sua era dourada.
No Botafogo, Manga foi titular absoluto por quase uma década, entre 1959 e 1968. Foram 442 jogos, 394 gols sofridos, quatro títulos cariocas (1961, 1962, 1967 e 1968), três Torneios Rio-São Paulo (1962, 1964, 1966), além de outros torneios internacionais — como o Intercontinental de Paris. Jogava sem luvas, com coragem, estilo e um reflexo inacreditável. Seus dedos tortos foram moldados por bolas e choques em tempos em que goleiro jogava na raça.
Manga dominava o Maracanã com a mesma naturalidade com que respondia provocações de rivais. Costumava dizer que em clássicos contra o Flamengo, já gastava o prêmio da vitória antes do apito final: “o leite das crianças já estava garantido”.
Na Seleção Brasileira, Manga disputou 12 jogos entre 1965 e 1967 e foi o goleiro titular na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. Apesar da eliminação precoce do Brasil, ele manteve-se como um nome de referência entre os arqueiros do país.
Acusado injustamente de envolvimento com o patrono do Bangu, Castor de Andrade, Manga, em 1968, foi negociado com o Nacional do Uruguai — onde novamente brilhou
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Sobre essa acusação, sabe-se que, em 1967, o Botafogo conquistou o Campeonato Carioca vencendo o Bangu por 2 a 1. Mas, mesmo com o título, uma nuvem pesada pairou sobre a vitória alvinegra — e especialmente sobre Manga. O então jornalista e ex-treinador João Saldanha, conhecido por seu temperamento explosivo e língua afiada, fez insinuações públicas de que Manga teria se vendido ao Bangu, clube controlado politicamente e financeiramente por Castor de Andrade, notório bicheiro e patrono da equipe de Moça Bonita.
A acusação, ainda que não comprovada, foi o estopim de uma sequência dramática e quase trágica. Castor, enfurecido com Saldanha, invadiu armado os estúdios da emissora onde ele trabalhava para tirar satisfação. O episódio causou tanto impacto que Saldanha passou a andar armado “para se defender”, segundo suas próprias palavras.
No dia seguinte à decisão do Carioca, Saldanha apareceu armado na sede do Mourisco, núcleo náutico do Botafogo. O alvo era claro: Manga. Quando se encontraram, o jornalista sacou o revólver e disparou três vezes: dois tiros no chão e um para o alto — nenhum atingiu o goleiro. O objetivo era, segundo ele, apenas intimidar. Mas a tensão foi real, e a cena entrou para o folclore do futebol brasileiro.
O momento foi testemunhado por ninguém menos que Jairzinho, o Furacão da Copa, que mais tarde narraria com detalhes o que viu naquele dia, em entrevista ao podcast Resenha com TF. Abaixo, o trecho da declaração:
“O Saldanha falava que o Manga estava vendido naquela decisão contra o Bangu. O Manga ficou uma fera com aquilo, disse: ‘Vou ganhar o título e é pra você, seu comunista’. E ganhou, Saldanha teve que aturar. Só que o Saldanha se preparou, foi armado para a comemoração. O Manga estava no meio da roda, todo mundo parou de falar e ficou olhando para as costas do Manga.
Foi quando ele sentiu que tinha algo diferente, viu o Saldanha. Manga virou e foi de encontro a ele. A uns cinco metros, o Saldanha falou: ‘Se quiser continuar vivo, não dê mais um passo’. Manga deu dois. Saldanha sacou a arma, nunca vi um revólver daquele tamanho. Deu três tiros. Manga pulou o muro com um salto triplo. Essa história é verdadeira.”
Manga saltou um muro de quase 3 metros para escapar. A partir dali sua situação no Botafogo ficou insustentável. Embora jamais tenha sido provada qualquer irregularidade por parte do goleiro, o clima de desconfiança e a violência do episódio pesaram. Pouco tempo depois, foi negociado com o Nacional do Uruguai.
Foi o fim de uma era no Botafogo e o início de uma nova jornada no futebol internacional. Mas a cicatriz daquele momento nunca foi esquecida — nem por Manga, nem por quem testemunhou o episódio.
No Nacional-URU, Manga conquistou títulos uruguaios (1969 a 1972), a Copa Libertadores e a Copa Intercontinental de 1971. Com 339 minutos sem sofrer gols em sua chegada, conquistou Montevidéu. Em seguida, transferiu-se para o Internacional de Porto Alegre, onde, mesmo com dedos quebrados, foi campeão brasileiro em 1975 e 1976. Uma de suas defesas mais célebres foi contra Nelinho, do Cruzeiro, na final do Brasileiro de 75. Virou lenda também no Sul.
Passou ainda por Operário-MS, Coritiba, Grêmio (quebrando o tabu da troca Gre-Nal) e encerrou a carreira no Barcelona de Guayaquil, do Equador, onde foi campeão nacional em 1981, aos 44 anos.
Após a aposentadoria, enfrentou dificuldades financeiras e problemas de saúde. Viveu no Equador, depois no Uruguai, onde recebeu ajuda de torcedores para custear tratamentos. Em 2020, graças a uma campanha iniciada pelo jornalista Marcelo Gomes (ESPN) e o apoio de fãs, foi acolhido no Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro, onde viveu com sua esposa, Maria Cecília, até seus últimos dias.
Recebeu diversas homenagens em vida, incluindo a escolha de 26 de abril como o “Dia do Goleiro”, data que celebra sua memória, coragem e contribuição ao futebol. Conquistou duas Bolas de Prata (1976 e 1978), foi incluído no Time do Século do Botafogo, no Time dos Sonhos da revista Placar e é o 12º maior ídolo da história do Botafogo, segundo o jornal O Globo.
O Botafogo perdeu seu maior goleiro, o futebol perdeu uma lenda. Mas suas defesas impossíveis nunca serão esquecidas.
Manga partiu, mas sua lenda permanece viva — no Botafogo, no Brasil, na América do Sul e na memória de todos os que amam o futebol de verdade.
Descanse em paz, Muralha. Obrigado por tudo.