Filipi Gradim: Quíron e a peleja do centauro 

Quíron, o arquétipo do signo de Sagitário

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp

Diz-se comumente, na linguagem astrológica, que, a cada ano, o Sol entra em Sagitário no dia 22 de novembro e permanece aí até 21 de dezembro. No presente ano de 2022, essa entrada se deu precisamente às 05h28, dando prosseguimento ao curso zodiacal. Na categoria dos signos, Sagitário traduz a potência elementar do fogo, ardendo energia em profusão. Situa-se no intervalo que separa um signo de água introspectivo e obscuro (Escorpião) e um signo de terra realista e pragmático (Capricórnio), expandindo a energia psíquica que Escorpião mantém no inconsciente e oferecendo a Capricórnio rico material de vida para ser aprimorado. 

Conforme dito no artigo de minha autoria intitulado Vênus[Oxum] e publicado nessa mesma coluna, a astrologia pode ser validada, sim, à luz da ciência, desde que a interpretemos como uma ciência simbólica; que, diferentemente das ciências acadêmicas, carece de rigor e de exatidão matemáticas (ainda que apliquemos cálculos para medição de graus e de órbitas). No entanto, há empirismo astrológico; ou seja, a experiência sensível pode comprovar fenômenos celestes, de modo que o estudo de um mapa astral implica em cuidadosa observação do movimento planetário, bem como implica na observação de comportamentos psicológicos que os indivíduos apresentam e que são passíveis de análise e, por isso mesmo, de cientificidade.   

Por apresentar tal vertente simbólica, que apela mais às faculdades de interpretação do que às faculdades lógicas, a astrologia é uma ciência das imagens. Ainda reportando ao artigo supracitado, vimos que tal imagem, a partir do que o psicanalista Carl Gustav Jung professou em suas obras, chama-se arquétipo. Recapitulando o que foi dito: arquétipo é uma fantasia que se produz livremente por meios que escapam ao domínio humano e, portanto, independem de reminiscências pessoais. Ou seja, é a fantasia que ocorre sem escolha da imaginação particular, que cada um de nós é capaz de dar vazão pelo simples ato de se lembrar dessa ou daquela coisa. Por não obedecer à vontade humana, o arquétipo ignora as superfícies, sendo, então, aquele tipo de imagem cuja manifestação deriva de algo inumano, ou seja, da “camada mais profunda do inconsciente, onde jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias” [1].  

Cada indivíduo humano mantém consigo um reservatório de imagens referentes às bagagens que a vida acumula. Essas são espécies de imagens inconscientes pessoais. Mas o arquétipo, não; ele é inteiramente impessoal e; portanto, destituído de conteúdo que venha remeter “lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassam o limiar da consciência (subliminais)”[2]. Imagens pessoais mantidas no inconsciente nada mais são do que sombras que vez ou outra vêm à tona, seja na forma de ações involuntárias seja na forma de projeção onírica. 

O arquétipo é uma imagem que ultrapassa a história pessoal de cada indivíduo e que conta com uma idade pré-linguística; e, se, como afirmamos, ignora conteúdos pessoais, é esvaziada de tal modo que, o que temos dela, são apenas “conteúdos do inconsciente coletivo”, “resíduos de modos arcaicos de funções especificamente humanas, como também os resíduos das funções da sucessão de antepassados animais do homem, cuja duração foi infinitamente maior do que a época relativamente curta do existir especificamente humano”[3]. Essa natureza residual do arquétipo se estende e se alonga feito um grande elástico (para usar uma expressão bergsoniana) e que não encontra termo final, pois está livre das determinações de tempo e espaço que usualmente a consciência humana faz das coisas que atravessam o curso da história. O que significa que há séculos os arquétipos nos acompanham na surdina do inconsciente. 

A remissão feita ao artigo Vênus[Oxum] nos serve de preparatório para a abordagem de um arquétipo que considero como sendo um dos mais espectáveis da astrologia, que é Quíron. Ora, se o Sol se encontra em Sagitário, nada mais oportuno do que falar sobre o arquétipo de Quíron. Mesmo porque Quíron é a mais fundamental imagem que o signo de Sagitário exprime e, portanto, é a natureza residual que mais se mantém viva no inconsciente de todos aqueles que são sagitarianos ou que, no mapa astral, apresentam casas com Sagitário em proeminência.  

Quíron, como boa parte do corpo arquetípico da astrologia ocidental, é um mito grego. Por isso, o que sabemos a seu respeito parte de narrativas do mundo helênico. Antes, porém, de discorrermos sobre sua história, importa saber que Quíron é um Centauro. Na etimologia, especula -se que Centauro deriva da redução e da variação linguística de Kentauros, que significa Genos (raça, parente), fundida com Tauros, touro. Logo, está contida na palavra Centauro a designação de uma filiação animal. A “raça dos touros”, na verdade, é a raça de seres híbridos, cujo corpo é a mescla de cavalo com humano; no que o tronco e os membros inferiores são partes anatômicas de um equino e, do peito à cabeça, é a região estritamente humana.  

Os robustos centauros viviam nas montanhas e nas florestas, ao lado de suas parceiras, as Ménades, praticando hábitos igualmente híbridos; pois, feito selvagens, alimentavam-se de carne crua; mas embebedavam-se com vinho, feito humanos destemperados, cultuando o deus Dioniso. Além disso, infundiam no vinho o amanita muscaria, espécie de cogumelo cru que gerava alucinações, visões proféticas, força muscular e vigor erótico. O gênio do centauro é arrebatado e brutal, causando repúdio em deuses e mortais. Malgrado isso, os centauros são admirados pela natural perícia hípica, como também pelo exímio talento com o arco e flecha.  

Conta-se que o rei Ixion, unindo-se a Néfele, uma imagem ilusória da deusa Hera – que Zeus, como castigo, plasmou em forma de nuvem –, assina a paternidade do primeiro Centauro; que, por sua compleição abjeta, foi desprezado. Esse, por sua vez, acasalando-se com as éguas da Magnésia, gerou o que seria a “raça dos touros”. No entanto, no tocante à gênese, Quíron diferencia-se dos demais centauros porque ele, na verdade, é filho do titã Cronos, quando o deus do tempo, metamorfoseado como cavalo, se uniu à Fílira, uma das filhas do Oceano. Pelo visto, a filiação de Quíron o aproxima diretamente do panteão dos deuses, fazendo dele um ser tão imortal (e tão querido) quanto os demais filhos de Zeus. 

Deveras, o caráter de Quíron o distancia dos seus irmãos centauros, já que ele não é beberrão, violento, intempestivo e luxurioso. Ao contrário, Quíron é de natureza benfazeja, hospitaleira e sensata. Por aparentar-se mais com um deus do que com uma besta, Apolo e Ártemis o apadrinharam. Essa lhe ensinou a arte da caça, enquanto aquele ensinou a arte da música, da poesia, da filosofia e, principalmente, da medicina. Não tardou para que o aplicado Quíron absorvesse os conhecimentos e os colocasse em prática, tornando-se então mestre em curar e praticar cirurgias. O local onde vivia, uma gruta no alto do monte Pelion, na Tessália, passou a ser o centro de atendimento médico em que prestou serviço a muitas pessoas, além de ter transmitido seu saber a vários de seus discípulos, como Aquiles, Ulisses, Nestor etc.  

Certo dia, Hércules, de passagem pela Tessália, aproveitou para pedir um conselho ao bom centauro Quíron. No entanto Quíron cavalgava na floresta com seus companheiros. Hércules, na tentativa de aguardar a chegada do médico e conselheiro, acomodou-se na gruta no monte Pelion e, para acompanhar sua refeição, solicitou a Folo, um dos Centauros, que lhe servisse vinho. Folo hesitou, uma vez que aquele vinho era um presente de Dioniso e estava reservado para um momento especial.  Hércules pegou o vinho à força e, ao abri-lo, o aroma da bebida exalou longe, alcançando o tropel de centauros. Enfurecidos, os centauros regressaram do passeio e conferiram o que estava acontecendo. Desconfiavam que ou algum ladrão roubou vinho ou algum inimigo invadiu o território. Foi então que Hércules ouviu o som dos cascos vindo em sua direção e, com a poeira que se fez, naquela cavalgada massiva, entrou em pânico e defendeu-se como pôde. Disparou uma saraivada de flechas para alto, no que uma delas atingiu em cheio a coxa do amigo Quíron. Não fosse pelo fato de que a flecha estava envenenada com o sangue da Hidra de Lerna, Quíron não teria sofrido tanto com o golpe.  

Devido à flechada, Quíron não jazeu morto, porque sua natureza divina o impedia. No entanto, ficou condenado a sentir dores terríveis. Pelo fato de ser médico e curandeiro, Quíron, reiteradas vezes, buscou tratar-se, mas sem sucesso. A cada nova tentativa, um novo fracasso. E, nesse ciclo incessante, Quíron passou a viver até o fim de seus dias. Acorrentado àquela condição agonizante, passou a enfrentar a mais terrível dor, e a suportar o fato de que, mesmo sendo o mais hábil dos médicos, não lhe cabia o poder de eliminar aquele tormento.  

Vale dizer que Quíron é arquétipo tanto do signo de Sagitário, quanto de outro corpo celeste que integra o mapa astral de todos os indivíduos, a saber: o asteroide Quíron, situado entre Saturno e Urano. Enquanto arquétipo de Sagitário, Quíron é a imagem de um conteúdo psíquico que emerge como comportamento típico do hibridismo homem-animal. Da mesma forma que os centauros, sagitarianos são seres corpulentos, vivazes, vigorosos sexualmente, espaçosos, livres, aventureiros, otimistas, filosóficos, proféticos e pedagógicos. Por outro lado, também são voluptuosos, incontroláveis, intempestivos, brutos, irascíveis, cegos e dogmáticos. 

O sagitariano vive o arquétipo do indivíduo cindido entre o descontrole do instinto e o controle da razão. É a peleja clássica entre hybris e logos que marca as tensões do sagitariano ou daqueles que têm Sagitário, por exemplo, no ascendente, ou que apresentam planetas no signo de Sagitário. O sagitariano se encerra no mundo onde, em um só corpo, a “porção geratriz do vício” é instada a dar nascimento à virtude[4]. Sendo assim, é preciso autodomínio para adotar uma conduta ilibada, mediando o irracional e o racional, pois cada uma dessas forças exige que se respeite e realize aquilo que lhe é de direito. O instinto exige saciedade do prazer, enquanto a razão quer a medida do que é justo, bom e verdadeiro. Por isso, raros são os sagitarianos que mantêm o equilíbrio, posto que é penoso chegar a tal mediania, ponderando a balança moral.  

Enquanto arquétipo do asteroide Quíron, o centauro Quíron é a pura expressão coletiva e arcaica de um conteúdo psíquico que revela outro conflito centáurico. Se, para Sagitário, a dificuldade se encontra na mediação entre a pulsão do querer e a pulsão do saber; para Quíron, por outro lado, a dificuldade é saber tratar das próprias feridas. Como não poder curar a dor sendo médico? Quíron, então, representa a dualidade psíquica em duas esferas: na esfera ética, onde é preciso saber conduzir-se com sabedoria, atirando flechas na direção de bons alvos; e também na esfera psicológica, onde é preciso encarar aquilo que é impossível de curar.  

As dores insuportáveis são processos psíquicos que vivemos ao longo da vida e, diante das quais fugimos, mascaramos ou delas tomamos ciência e buscamos compreendê-las na sua intimidade. Quíron mostra a potência humana vivendo, desde imemoriais tempos, o desafio de se sentir incapaz de solucionar o que escapa ao controle da razão e da ciência. Mesmo sendo sabedor de todas as dores, Quíron não pôde curar a si mesmo; o que significa que a condição do curandeiro que não se cura é acessar o mais profundo de si mesmo, sem medo das sombras que ocultam os fracassos que não temos coragem ou maturidade para reconhecer e admitir. Nas casas mundanas em que se situa no mapa astral, Quíron é a latência de dores incuráveis que se manifestam no corpo físico (casas 1 e 6), em âmbito familiar (casa 4), nos relacionamentos (casa 7), no trabalho ou na profissão (casas 6 e 10) ou no modo como lidamos com o luto (casa 8).  

Jung nos fala que não basta conhecer as imagens arquetípicas desse não-eu psicológico, desse passado psíquico que todos nós carregamos conosco, lançando nossa vida à própria sorte[5]. Ou, dito de outro modo, não basta que Quíron nos seja íntimo e inconsciente e que se manifeste livre de nosso poder de decisão. Pois, caso contrário, criamos uma cisão entre a psique individual e a psique coletiva. Esse estado primitivo de Quíron, esse Centauro que galopa em nossa vida emocional, atritando o selvagem e o sábio, o médico e o paciente, deve ser integrado à personalidade e assumido em uma síntese, sem repressão e sem neurose. E a forma com que podemos consagrar essa síntese é a terapia, dentre as quais destaco a astrologia.  

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp Filipi Gradim: Quíron e a peleja do centauro 

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui