Descobri Nostalgias Canibais, de Odorico Leal, através de uma indicação na revista Quatro Cinco Um, e a leitura me levou a um mergulho profundo em um Brasil que devora a si mesmo. O livro revisita a antropofagia modernista, não apenas como um conceito literário, mas como uma chave para entender a identidade fragmentada do país.
A Quatro Cinco Um, publicação brasileira dedicada à crítica literária e ao debate cultural, leva esse nome em referência a Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, romance distópico que retrata um mundo onde livros são queimados pelo governo para controlar a sociedade. Assim como Bradbury alertava contra a destruição do pensamento crítico, Leal nos convida a mastigar a história nacional sem digeri-la de forma simplista.
O livro se passa em um futuro em que os livros são proibidos, pensar por conta própria é visto como algo errado e o questionamento das regras é desencorajado. O protagonista, Guy Montag, trabalha como bombeiro, mas, em vez de apagar incêndios, sua função é queimar livros. O número 451 se refere à temperatura, em Fahrenheit, em que o papel pega fogo, o que equivale a 233 graus Celsius.
Publicado em 2023 pela Editora Ayine, Nostalgias Canibais marca a estreia literária de Odorico Leal, trazendo uma coletânea composta por uma novela e quatro contos. O autor, nascido em 1983 em Picos, no Piauí, é doutor em Literatura Brasileira pela USP e atua como professor, crítico literário e tradutor. Seu livro de estreia como autor demonstra um olhar autêntico e uma abordagem sofisticada da literatura brasileira.
Leal nos conduz por narrativas que transitam entre o realismo e o fantástico, entre a sátira e o farsesco. Revisita a história do Brasil, do período colonial até a recente polarização dos embates políticos, tocando em temas sensíveis com humor e ironia. Sua prosa demonstra habilidade em explorar a linguagem e seus efeitos, criando um futuro imaginado que promete um acerto de contas com o passado.
“Paraíso Canibal”, a novela que abre o livro apresenta um Macunaíma canibal, que atravessa séculos e estados brasileiros, deixando-se levar pelos arroubos de cada época enquanto tenta saciar sua fome insaciável. Esse protagonista simbólico reflete o caráter mutável do Brasil e sua capacidade de assimilar, deturpar e regurgitar influências externas ao longo do tempo.
“Diálogos Felinos” é um conto em que dois gatos tecem críticas afiadas à trajetória de sua dona e especulam sobre o futuro, dentro de um apartamento do qual provavelmente serão despejados. Em meio às reflexões dos felinos, Leal aborda a precariedade habitacional, a insegurança da classe média e a relação entre humanos e animais de forma cômica e filosófica.
No conto, “O Estudante e o Espelho”, um jovem enfrenta uma crise com sua própria feiura enquanto estuda para um concurso em Fortaleza e lê Umberto Eco em busca de respostas. Esse conto reflete sobre os padrões estéticos impostos pela sociedade e como eles afetam a autoestima e a identidade do indivíduo.
Já no conto, “Entrevista com o Escritor Amargurado”, uma jornalista entrevista um escritor desiludido para entender os “Getulinhos”, um novo fenômeno político no país. O termo, criado pelo autor, faz referência irônica a Getúlio Vargas e simboliza uma geração de políticos populistas que tentam replicar sua imagem e legado, mas sem a mesma profundidade histórica. Os “Getulinhos” são nacionalistas vazios, que romantizam o passado enquanto perpetuam desigualdades e manipulam discursos ideológicos para conquistar seguidores.
Por fim, no conto, “O Músico e as Begônias”, no apartamento de sua namorada editora — que sempre encontra um jeito de fugir de São Paulo —, um músico cuida de plantas enquanto tenta lidar com uma vizinha barulhenta. A história discute temas como solidão, convivência urbana e a busca por um sentido em meio ao caos da vida cotidiana.
Cada uma dessas narrativas enriquece a coletânea, oferecendo ao leitor uma visão multifacetada das contradições presentes na sociedade brasileira contemporânea.
O título Nostalgias Canibais sintetiza a essência do livro. “Nostalgia” remete ao saudosismo idealizado de um passado muitas vezes romantizado, enquanto “canibalismo” faz referência à antropofagia cultural modernista de Oswald de Andrade. No entanto, Odorico Leal não se limita a reproduzir as ideias do Manifesto Antropofágico, mas as reinventa. Se para os modernistas o canibalismo representava uma forma de apropriação cultural criativa, para Leal, ele é um espelho incômodo do Brasil contemporâneo.
O país devora suas próprias narrativas, reescrevendo a história ao sabor de interesses políticos e sociais. A obra explora como o Brasil consome seus mitos fundadores, seja através da exaltação de figuras históricas controversas, seja na negação de episódios traumáticos de sua trajetória. O passado colonial, por exemplo, muitas vezes é retratado de forma idílica, escondendo genocídios e escravidão. Leal desmonta essa romantização, expondo como a nostalgia pode ser um mecanismo de opressão.
Seja na sátira política de “Entrevista com o Escritor Amargurado”, seja na alegoria histórica de “Paraíso Canibal”, o livro questiona quem tem o direito de narrar a história. A presença dos “Getulinhos”, personagens que evocam o populismo e a manipulação da memória nacional, reforça a ideia de que a história brasileira é constantemente reciclada e distorcida para atender interesses de momento.
Leal demonstra habilidade ao transitar entre estilos narrativos distintos. Sua prosa flui entre o realismo e o fantástico, alternando momentos de introspecção com passagens cômicas e farsescas. Há uma ironia sofisticada em sua escrita.
Os diálogos são afiados e cheios de referências culturais, tornando a leitura uma experiência dinâmica e reflexiva. Ao mesmo tempo, a experimentação com a estrutura narrativa contribui para a sensação de deslocamento e estranheza que permeia o livro. Personagens fragmentados, tempos embaralhados e situações absurdas reforçam a ideia de um Brasil que está sempre em trânsito entre passado e presente, tradição e ruptura.
Leal revisita a antropofagia cultural e a insere no século XXI, refletindo sobre globalização e identidade. A metáfora do canibalismo é expandida para abordar temas como política, cultura e desigualdade social.
O livro desconstrói a romantização do passado, mostrando como ela pode ser utilizada como ferramenta de dominação e apagamento histórico.
A obra combina diferentes registros de linguagem e explora a fragmentação da identidade brasileira por meio de personagens simbólicos e estruturas narrativas não convencionais.
A riqueza de alusões históricas e literárias pode tornar a obra desafiadora para leitores não familiarizados com o Modernismo ou com os debates políticos contemporâneos.
Em tempos de revisionismo histórico e polarização política, a obra de Leal se torna ainda mais relevante. O autor nos convida a um exercício de autocrítica e reflexão, desafiando narrativas confortáveis e expondo as contradições da identidade nacional. O livro não se contenta em apenas contar histórias; ele provoca, questiona e desestabiliza certezas.
O leitor que se aventurar por essas páginas encontrará uma literatura que não apenas entretém, mas que exige um posicionamento. Quem são os verdadeiros canibais da história brasileira? O que devoramos e o que deixamos apodrecer em nossa memória coletiva? Nostalgias Canibais não oferece respostas fáceis, mas nos força a mastigar essas questões até o fim.
Odorico Leal entrega uma obra que se destaca na literatura brasileira contemporânea. Nostalgias Canibais é um livro que desafia, que exige um leitor atento e disposto a sair da zona de conforto. Seu tom ácido e sua inventividade fazem dele uma leitura obrigatória para aqueles que querem entender o Brasil além dos mitos e das versões oficiais.
Se a literatura tem o poder de transformar nossa visão de mundo, Leal nos entrega um prato cheio – amargo, mas indispensável.