Desde a transferência da cidade para o Morro do Castelo, em 1567, o Rio de Janeiro estabeleceu marcos religiosos implantados em seus diversos outeiros, do latim altariu (altar), uma pequena elevação no terreno, um morro, local de preces e oferendas na antiguidade.
Considerando a topografia da região, a cidade foi implantada junto ao mar, circundada por morros, montanhas e… outeiros.
Dialogando com a natureza exuberante, templos católicos tornaram-se referências visuais na paisagem e na denominação de diversos logradouros: ladeiras de São Bento, Santo Antônio, Misericórdia, da Glória…
Muitos outros se encontram ocultos dos olhares menos atentos, conforme nossa coluna https://diariodorio.com/william-bittar-as-capelas-quase-invisiveis-do-rio/, publicada em junho de 2022.
No primeiro século da ocupação, a várzea onde se instalaria a Praça XV de Novembro, era balizada pelos famosos quatro morros, com seus respectivos templos: o Mosteiro de São Bento, o Convento de Santo Antônio, a pequena ermida dedicada à Nossa Senhora da Conceição e o Colégio dos Jesuítas, no morro do Castelo, onde também estava a primeira Sé, sob a devoção do padroeiro São Sebastião.
Com a expansão do núcleo povoado, ao longo dos séculos seguintes outras regiões foram ocupadas e novos templos surgiram em diferentes outeiros, alguns deles tornando-se origem daqueles futuros bairros.
Entre os mais significativos, o pequeno morro que abriga a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, construída no século XVIII,acabou fundindo o elemento geográfico à devoção, tornando-se um dos templos mais relevantes na história e nas artes da cidade, com seu edifício com planta barroca e interiores rococós que se destaca na paisagem de um dos mais conhecidos parques cariocas: o Aterro do Flamengo.
Na baixada de Jacarepaguá, o antigo Morro do Galo recebeu a igreja de Nossa Senhora da Pena, no século XVII, visível no topo daquele outeiro-penhasco, revelando-se aos olhares dos moradores, fiéis e visitantes (https://diariodorio.com/william-bittar-sobre-a-igreja-e-devocao-de-nossa-senhora-da-penna-no-rio-de-janeiro/).
A pouco mais de 15 quilômetros a oeste, uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora de Montserrat foi construída num pequeno outeiro às margens da Estrada dos Bandeirantes, em Vargem Pequena, no século XVIII, desfrutando de uma vista privilegiada, ainda que discretamente oculta dos olhos menos atentos (v. https://diariodorio.com/capela-nossa-senhora-de-montserrat-um-oasis-panoramico-em-vargem-pequena/).
O século XX continuou a testemunhar a construção de templos em outeiros da cidade. A região do Alto da Boa Vista, dentro da Floresta da Tijuca, recebeu duas pequenas ermidas de concepção arquitetônica elegante e diferenciada. A Igreja de Nossa Senhora da Luz, praticamente incrustrada na floresta, de fachada com influência medieval e a capela Santo Cristo dos Milagres, implantada em uma pequena elevação ao final da Estrada da Paz. O edifício adota uma linguagem neocolonial, mas apesar de sua origem lusa, optou pela vertente hispano-americana em sua fachada.
A partir de meados do século XIX, principalmente após a implantação dos ramais ferroviários, houve o adensamento de muitas regiões, que também receberam seus templos, alguns deles em elegantes outeiros que os destacavam na paisagem suburbana.
Entre eles a Igreja de Nossa Senhora da Penha de França, Basílica e Santuário católico, um dos mais tradicionais edifícios religiosos da cidade pela sua localização e vista exuberante além das festividades que fazem parte da cultura carioca merece referência especial desde os primórdios de sua implantação. No início do século XVII uma modesta ermida foi construída no penhasco como agradecimento por uma graça alcançada, assim como ocorrera com a igreja da Pena, em Jacarepaguá. Devido à outra graça, no início do século XIX o santuário recebeu a famosa escadaria escavada na rocha, cenário de peregrinações e sacrifícios, como a subida de joelhos daqueles cerca de 400 degraus.
Templos menores ocupam outros outeiros distribuídos pela cidade.
No antigo Morro do Breves, em São Cristóvão, numa pequena elevação no interior do Bairro Santa Genoveva, o Visconde de Morais, em 1917, construiu uma capela dedicada à Santa, Padroeira de Paris, com referências formais explícitas ao original francês.
Em Vila Isabel, no alto do morro de Santo Antônio, à rua Teodoro da Silva, a comunidade portuguesa da região ergueu, nos primeiros anos do século XX, a igreja de Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus do Monte, com elementos goticizantes, visível de vários pontos da vizinhança até a construção de um shopping que obstruiu sua plena visibilidade.
O bairro da Piedade também conta com uma interessante capela, no cimo de uma ladeira, com torre única e elementos de influência medieval, com os arcos ogivais em sua portada e janelas. Trata-se do templo dedicado a Nossa Senhora da Piedade, na rua da Capela, nas imediações da antiga Universidade Gama Filho. O edifício foi, provavelmente, construído no final do século XIX, no período da consolidação dos bairros no ramal ferroviário da Central do Brasil
Em Madureira, bairro próximo, desde 1931, a capela de São José da Pedra se apresenta no alto do antigo morro do Dendê, com vista panorâmica para o bairro e vizinhança. A pequena ermida agrega elementos que integram a cultura popular, como a própria fundação da Escola de Samba Império Serrano e a prática do jongo, patrimônio imaterial nacional.
A paróquia dedicada a Santo Antônio de Pádua e Nossa Senhora da Boa Vista também está implantada em um outeiro, visível tanto do seu próprio bairro, o Cachambi, como por vários pontos do Grande Méier. Recentemente recebeu algumas reformas, modificando seu aspecto, aproximando-a formalmente de algumas capelas mineiras do século XVIII.
Na região central da cidade, avistada por aqueles que circulam pelas imediações da estação ferroviária da Central, a torre única, pontiaguda, da igreja de Nossa Senhora do Montserrat destaca-se sobre o antigo Morro do Pinto.
Seguindo o ramal ferroviário da Leopoldina, no alto do morro da Bela Vista, em Ramos, encontra-se a pequena igreja de Nossa Senhora da Conceição, fundada em 1922 pela Irmandade de mesmo nome, cuja fachada foi muito modificada por sucessivas administrações. Além disso, a construção de um grande espaço coberto praticamente obstruiu a vista de sua fachada sobre um elegante outeiro local.
Continuando no mesmo ramal, nas imediações da Estação de Brás de Pina, no alto da ladeira da rua Gurupatuba, destaca-se a fachada com torre única da Paróquia de Santa Cecília, fundada em 1929. O partido arquitetônico faz alusão a pequenos templos medievais.
São muitas edificações ocultas de interesse cultural, templos, bares, restaurantes, becos, vielas, ladeiras, escadarias…
Aguardam olhares mais atentos, interessados na alma das ruas, muito além dos pontos turísticos apresentados nos guias oficiais, geralmente lotados, impedindo a vivência do lugar.
Outros caminhos, outros edifícios, outras visadas, continuam esperando a visita de flaneurs contemporâneos para revelar alguns segredos.