William Bittar: O Castelinho da Glória e a obra de Antonio Virzi

O Villino Silveira foi projetado em 1915 para a residência de Gervásio Renault da Silveira, fabricante do famoso Elixir de Nogueira, cuja fábrica foi implantada em endereço bem próximo, na Rua da Glória, em 1916

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp

In memoriam do Professor Arquiteto Olinio Coelho

Grande defensor do Ecletismo

e da obra de Antonio Virzi no Rio de Janeiro.

O Diário do Rio, em matéria de 05 de julho de 2022, noticiou a reinauguração do Hotel Glória como residencial, prevista para 2026. Além do edifício principal, o projeto contempla o restauro do entorno imediato composto pelas calçadas, jardins e balaustrada, incluindo um pequeno palacete situado à Rua do Russel 234, conhecido como Villino Silveira, inscrito em 1970 nos livros do Tombo Histórico e de Belas Artes do IPHAN, portanto, proteção federal. Segundo o jornal, este imóvel deverá funcionar como café-escola e abrigar o acervo histórico do edifício e do Hotel, um pequeno centro cultural.

O termo italiano villino se refere a palacetes, denominação adotada no Brasil pelo autor, Antonio Virzi, arquiteto italiano, nascido em Palermo em 1882, estabelecido no Rio de Janeiro desde a primeira década dos novecentos, depois em São Paulo, onde faleceu em 1954.

Além de ministrar aulas de concepção e elaboração de ornatos na Escola Nacional de Belas Artes, em 1911, indicado por Rodolfo Bernardelli, Virzi projetou diversos edifícios no Rio, Niterói e São Paulo, apresentando um repertório muito singular e original, marcando sua passagem pela arquitetura nacional.

O Villino Silveira foi projetado em 1915 para a residência de Gervásio Renault da Silveira, fabricante do famoso Elixir de Nogueira, cuja fábrica foi implantada em endereço bem próximo, na Rua da Glória, em 1916, edifício demolido após suspensão de seu tombamento na década de 1970, uma perda irreparável para o patrimônio carioca.

postal elixir de nogueira William Bittar: O Castelinho da Glória e a obra de Antonio Virzi

Segundo a documentação oficial, o autor já possuía experiência em diversos tipos de projetos na Itália, antes mesmo de migrar para o Brasil, onde casou-se com Lívia Rocha Miranda, que pertencia a uma família tradicional da elite carioca. Provavelmente, seu repertório muito particular está associado à formação em sua terra natal, como a obra do arquiteto Ernesto Basile, também autor de alguns villinos.

A obra de Virzi também é relacionada aos trabalhos de Antonio Gaudi, notável arquiteto catalão, que associava conhecimentos técnicos e artísticos em suas concepções compostas de volumes inesperados, soluções complexas de planta e fachada e apropriações de lotes com projetos inovadores e instigantes.

Assim como Gaudi, a atribuição de rótulos estilísticos é uma tentativa simplista para classificar um profissional com tal criatividade e ousadia, mesmo em um período pródigo em referências formais. Algumas denominações podem ser aplicadas, como influências historicistas, Liberty, Sezession vienense, art-nouveau, que variavam à medida que novos edifícios saíam de sua prancheta, a maioria demolida na década de 1970 para atender à especulação imobiliária: Vila Marinha, à rua Senador Vergueiro, a fábrica do Elixir de Nogueira, na rua da Glória, o indescritível Palacete Martinelli, situado na Av. Oswaldo Cruz, a casa Smith Vasconcelos, em plena Avenida Atlântica, em Copacabana.

projeto villino silveira William Bittar: O Castelinho da Glória e a obra de Antonio Virzi

Apesar de tudo,  foram preservados alguns exemplares de singular arquitetura capazes de testemunhar a genialidade deste profissional, distribuídos por bairros distintos conforme registrou o Professor Olinio Coelho em artigo publicado na Revista do IHGRJ, em 2017, fonte principal deste texto:  a re­sidência da família Silveira, proprietária da Fábrica do Elixir de No­gueira, na Rua do Russel, 734; a residência Victor Villiot Martins, na Rua Sá Ferreira, 80, Biblioteca Municipal de Copacabana; a Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, na Avenida Vinte Oito de Setembro, 200; a Ga­rage Pagani, na Rua Aníbal Benévolo, 315/A; o conjunto de três resi­dências, na Rua Mariz de Barros, 711, 721 e 723.

O Villino Silveira salvou-se da sanha demolidora através do processo de tombamento defendido em parecer pelo professor arquiteto Paulo Santos:  A posteridade, quando fizer inteira justiça a Virzi – o que já começa a acontecer -, não nos perdoaria se negligenciássemos o dever de recomendar ao tombamento a casa, como propomos se faça, supreendentementeratificado pelo arquiteto Lucio Costa, que anteriormente fizera críticas pouco abonadoras sobre a obra daquele profissional, utilizando termos como “fogos de artifício” para a fábrica Elixir de Nogueira.

A exposição mais detalhada da obra de Virzi poderá ser encontrada em bibliografia específica ou mesmo em endereços virtuais, mas destaquemos aqui dois exemplares encomendados pela família Silveira, responsável pela produção do famoso Elixir de Nogueira: a residência, projetada em 1915 na rua do Russel e muito próximo dali, à Rua da Glória, a fábrica, de 1916, notável e singular edifício, inscrito no Livro do Tombo das Belas Artes do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual em 1966, conforme pedido de Olinio Coelho, chefe do Serviço de Tombamento: Trata-se de edifício de quatro pavimentos, com subsolo, erigido em terreno de 19,50 m de testada por 35,67 m de fundos. Sua concepção arquitetônica desaparece face à obra escultórica que o envolve: as esculturas que adornam a fachada principal de alto a baixo, em excessivos ornatos, figuras humanas de grande dramaticidade, or­namentos vegetais, animais, flâmulas, emblemas, máscaras, em uma composição imprevista. As figuras parecem se despregar dos panos das paredes tão movimentadas se apresentam.

Mesmo com tantas qualidades e importância, este exemplar foi destombado em 1969 e demolido apressadamente para evitar qualquer nova medida preservacionista, iniciada por intelectuais, apoiada pelo Professor Trajano Quinhões, Diretor do Patrimônio Histórico da Guanabara, conforme noticiava o jornal O Globo, no dia 10 de janeiro de 1970.  A escritora Dinah Silveira de Queiroz fazia um apelo ao governador para que não destombasse o prédio da Rua da Gloria 214, pois aquele belo-horrível é a coisa mais positiva da art-nouveau entre nós.   

No dia 13 de janeiro do mesmo ano, o Correio da Manhã registrava o obituário: PRÉDIO DO ELIXIR DE NOGUEIRA DÁ LUGAR A OUTRO DE DOZE ANDARES.

O Castelinho da Glória ou Villino Silveira foi projetado em 1915 para residência, inspirado em solares semelhantes italianos, exemplares que Virzi conhecia muito bem.

O edifício foi implantado de forma criativa em terreno de dimensões reduzidas, incluindo uma reduzida testada. Através da apropriação volumétrica singular, conseguiu iluminar e ventilar diretamente os ambientes. A fachada apresenta elementos de origens diversas, como o torreão florentino que se destaca, arrematado por um terraço coberto, contíguo a uma torre cilíndrica que percorre a verticalidade do imóvel. A ornamentação, com serralheria de boa qualidade artística, percorre a influência art-nouveau até a geometrização do art-déco, tornando-se pioneiro na demonstração desta transição. Trata-se de um exercício arquitetônico de um período que produzia arquitetos capazes de compreender a associação entre história, teoria, técnica, funcionalidade e representação gráfica, um momento pouco compreendido por muitos, alguns responsáveis pelo desaparecimento de exemplos similares.

Ainda assim, ocorreram pedidos para seu destombamento, inclusive para incorporar o estreito lote ao edifício vizinho projetado para a antiga Rede Manchete, que felizmente não lograram êxito.

Nas imediações existia um outro notável exemplar do mesmo arquiteto, igualmente singular e notável em seu partido: o palacete Martinelli, na Av. Oswaldo Cruz, demolido na década de 1970 para construção de edifícios residenciais modernos.

Mas esta já é uma outra história, tal a importância dessa residência no cenário arquitetônico da cidade que, antropofagicamente, o devorou.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp William Bittar: O Castelinho da Glória e a obra de Antonio Virzi
Avatar photo
Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

1 COMENTÁRIO

  1. Ah, prof. William! Uma honra ter sido sua aluna e poder assistir inúmeras maravilhosas aulas de história da arquitetura brasileira como esse pequeno artigo deixa entrever. As obras de Virzi serão conhecidas por gerações de arquitetos graças a elas. E, cá entre nós, Paulo Santos era um visionário mesmo! Graças a ele, o ecletismo do Rio de Janeiro não foi “devorado” completamente pelo desprezo dos arquitetos modernistas. Com todo respeito, sr. Lucio Costa, mas Paulo Santos sempre esteve coberto de razão!

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui