Eu fui à Lapa e perdi a viagem, aquela tal malandragem não existe mais…
Como na letra do samba “Homenagem ao Malandro”, de Chico Buarque, fomos, eu e a Sheila, dar umas voltas pelos botecos da Lapa. Sheila, uma escritora paulistana, de Mogi das Cruzes, queria conhecer a Lapa, seus encantos e suas histórias.
Mas, a Lapa mudou. Nem Madame Satã a reconheceria. Jaguar disse uma vez, depois de passar algum tempo longe do bairro: “A Lapa virou Montmartre, Pigalle, essas coisas. Eu não reconheci a Lapa, imagine Madame Satã!”
Seguimos as pegadas de Madame Satã, o malandro mais icônico e famoso da Lapa. Fomos ao Capela, onde, nos anos 70, em uma noite o encontrei, com Jaguar, em uma mesa ao lado da minha, comendo bife com arroz e molho de tomate “porque arroz branco é comida de doente”, dizia.
Fomos ao Bar Brasil e ao Bar Retiro dos Artistas, paradas obrigatórias da dupla; e ao pequenino “Casa da Cachaça”, onde o cartunista e o transformista tomavam a saideira, papeando com seu Evandro, dono do boteco, antes de pegar o táxi para a Rua Taylor, onde eram vizinhos.
João Francisco dos Santos, o Madame Satã, nasceu em Glória do Goitá, na Zona da Mata, interior de Pernambuco, no dia 25 de fevereiro de 1900. Filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição – ambos descendentes de africanos escravizados – tinha dezoito irmãos.
Em 1907, o pai de João Francisco morreu, deixando a família em uma situação precária. Frente a esse cenário, Firmina Teresa, mãe do menino, decidiu trocar João por uma égua.
Vivendo como escravo, João conheceu Dona Felicidade, que o convidou a fugir da fazenda de Laureano, seu ‘dono’. Em 1908, o menino e a senhora chegaram ao Rio de Janeiro, onde Dona Felicidade montou uma pensão, chamada Hotel Ita Baiano. Cansado da vida que levava na pensão, João decidiu fugir e foi viver na Lapa.
João Francisco, então com 13 anos, foi morador de rua e cometeu pequenos furtos até conseguir um emprego como vendedor ambulante de panelas de alumínio. João, durante a vida, foi segurança, garçom, cozinheiro, capoeirista, marginal, ator e malandro.
Negro, pobre e assumidamente homossexual, Madame Satã foi um transformista visto como herói da contracultura que abalou a sociedade carioca. Dividindo seu tempo entre os palcos e a prisão, o artista se tornou uma figura emblemática e um dos personagens mais representativos da vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira metade do século XX.
Do primeiro crime – o assassinato de Alberto, um vigilante noturno que o desacatou, em um bar em uma noite de 1928 -, até sua morte, a vida do transformista foi marcada por outros 29 processos – 3 homicídios, 13 agressões, 2 furtos, 3 desacatos, 4 resistências à prisão, 1 ultraje ao pudor e 1 porte de arma, entre outros. Além disso, atribui-se a Madame Satã diversos assassinatos e mais de três mil brigas.
Nos processos nos quais foi indiciado, João foi condenado em dez, passando um total de 27 anos e 8 meses de sua vida, intercalados, na prisão.
O famoso apelido, Madame Satã, foi atribuído a João Francisco no carnaval de 1938, no “Bloco Caçador de Veados”, onde o transformista desfilou trajando uma fantasia dourada – inspirada no filme homônimo, do cineasta americano Cecil B. DeMille.
Em 1922, o sonho de ser artista começou a nascer dentro de Madame Satã – tudo por causa da companhia francesa Ba-ta-clan que passava uma temporada na cidade apresentando seu teatro de revista. Anos depois, o jovem conheceu a atriz Sara Nobre, artista que o apresentou ao mundo do teatro.
Anos antes, em 1916, ele já havia participado de uma gravação do primeiro samba gravado no Brasil: “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida. A primeira aparição do transformista no teatro foi em 1928.
Madame Satã começou a trabalhar como travesti-artista no espetáculo ‘Loucos em Copacabana’, assumindo a identidade de Mulata do Balacochê. O transformista muda-se para São Paulo e acaba sendo preso mais uma vez por atirar em um policial. Em 1950, ele retornou para o Rio de Janeiro e começou a viver uma rotina mais tranquila.
Nessa época, havia um novo teatro na cidade e Madame Satã decidiu fazer o teste para participar do primeiro espetáculo – ele conseguiu e passou a imitar Carmen Miranda na peça. O ano de 1955 também foi marcado na vida de Satã por outro grande acontecimento: a briga e morte do sambista Geraldo Pereira, um compositor muito conhecido nas décadas de 1940 e 1950.
Satã contava que estava tomando um chope no bar Capela, na Lapa, quando Geraldo chegou ao bar e o teria xingando, chamando-o para uma briga. Madame Satã conta então que deu apenas um soco no sambista que, ao cair, teria batido com a cabeça no meio-fio.
Na época, a lenda de que Madame Satã havia matado um homem com apenas um soco se espalhou rapidamente, aumentando ainda mais a fama do malandro.
Em 1975, Madame Satã atuou no musical Lampião no Inferno, escrito por Jairo Lima, e dirigido por Luiz Mendonça, onde interpretou o papel do próprio Satanás, contracenando com Elba Ramalho, Tânia Alves e Joel Barcelos.
Em 1971, Satã deu a famosa entrevista para “O Pasquim”. Quando perguntando pelos entrevistadores se era homossexual, Satã respondeu, categoricamente: “Sempre fui, sou e serei”. Após o sucesso da entrevista, Satã publicou “Memórias de Madame Satã”, sua biografia, escrita por Sylvan Paezzo, em 1972. Mesmo assumidamente homossexual, João Francisco era moralista e conservador. Casou-se com Maria Faissal e com ela criou e educou seis filhos de criação.
Após sair de sua última prisão, em 1965, Satã decidiu abandonar a Lapa e permanecer na Ilha Grande, indo morar na Vila do Abraão.
Em 1974 foi lançado o filme “Rainha Diaba”, que conta a vida de um transformista marginal, interpretado por Milton Gonçalves, livremente inspirado em Madame Satã.
Em fevereiro de 1976, Madame Satã foi internado como indigente em um hospital em Angra dos Reis. Jaguar resgatou o amigo na Ilha Grande e o transferiu para um hospital na Zona Sul do Rio de Janeiro, no bairro de Ipanema. Mesmo com o tratamento adequado, Satã faleceu, no dia 12 de abril de 1976, aos 76 anos, devido a um câncer.
Jaguar levou o amigo de volta para a Ilha Grande onde ele seria enterrado, no dia 14 de abril de 1976. “Fui em cima do caixão, tomando cachaça. Sozinho”, disse o cartunista.
Apesar da fama, a notícia de sua morte não foi muito noticiada no Rio de Janeiro – já em São Paulo, a morte de Satã saiu na primeira página da Folha Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Satã merecia um monumento na Lapa. Mas só foi homenageado em São Paulo, onde esteve uma única vez: um bar de roqueiros da capital foi batizado de Madame Satã.
*Ediel Ribeiro é jornalista, cartunista e escritor.