O Buraco do Lume, no Centro do Rio de Janeiro, é conhecido por ser palco de inúmeras manifestações, sendo elas greves, atos ou trabalhos culturais. O terreno quase de 3.000m2 foi vendido pelo banco Bradesco a empresários, e fica bem ao lado da Praça Mário Lago (ex-Melvin Jones), o quintal da Assembléia Legislativa, que ali tem sua nova sede.
Contudo, a empresa Sal Participação e Administração de Bens pretende mudar a utilização do terreno – que é um polígono destacado da praça propriamente dita, quase ao lado do Menezes Côrtes – transformar a parte da região em uma área residencial, já que mira a construção de um imenso prédio com mais de 20 andares e cerca de 550 apartamentos compactos de 40 a 60 metros quadrados.
O terreno se origina do desmonte do Morro do Castelo. Destacado da praça pelo extinto Banco estatal do Estado da Guanabara, foi vendido a uma construtora que faliu no meio da construção de uma torre comercial. O imbróglio demorou tanto a ser resolvido que o governo tapou o canteiro de obras e anexou-o – de forma informal – à praça. Por fim acabou nas mãos do Bradesco, que vendeu-o aos atuais donos. Neste ínterim, foi tombado e teve seu potencial construtivo aniquilado. Segundo especialistas consultados pelo DIÁRIO, o terreno sofreu uma ”desapropriação informal”, e o correto teria sido indenizar seus donos.
O arquiteto Fernando Costa, da Cité Arquitetura, responsável por desenvolver o novo projeto para o terrenaço afirma que a proposta estaria dentro da legislação do Reviver Centro e que o prédio seria mais uma construção a trazer movimento para o Centro do Rio, um residencial na sua região mais nobre.
“O projeto vai ajudar nessa nova fase que propõe mais moradias no Centro. A Praça Mário Lago será preservada e valorizada, inclusive com o condomínio assumindo a manutenção. A ideia é que o prédio seja projetado em pilotis para não restringir a circulação do público. Ofereceremos serviços no térreo, como bares e espaços para exposições”, diz Costa.
Já Lucas Faulhaber, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), revelou, ao Extra, que o uso público da área é consagrado e seria difícil uma mudança repentina. “Se o objetivo é requalificar o centro do Rio, o que não faltam são imóveis desocupados que poderiam ser reformados”.
Fernando rebateu a afirmação de Lucas e alegou que o custo da reforma de prédios mais antigos pode não ser viável, já que é necessário um cuidado especial. Especialistas dão conta que, além do custo alto e por vezes inesperado de um retrofit, um outro grande problema é que na região os prédios são condomínios com dezenas e às vezes centenas de proprietários, e a lei exige que pelo menos 2/3 deles concordem em converter um prédio de comercial em residencial, o que é praticamente inviável.
Ele ressalta que, por conta da existência de vários bens culturais de relevância histórica no entorno, o projeto ainda pode ser obrigado a sofrer adaptações para atender órgãos de preservação como IRPH (prefeitura), Inepac (estado) e Iphan (União). Por isso, alguns itens não estão definidos — é o caso do custo de venda dos apartamentos. O arquiteto não descarta que parte das unidades seja destinada a moradias de baixa renda, alvo de incentivos fiscais do programa Reviver Centro. Isto daria mais contrapartidas aos novos proprietários do polêmico terreno, conforme a lei que rege a revitalização.
Destombamento e tombamento
No último dia de sessão na Assembleia Legislativa em 2022, os deputados estaduais destombaram uma área privada de 2.517 metros quadrados, vizinha à Praça Mário Lago, no Castelo.
O projeto é do deputado Rodrigo Amorim (PTB) e a a justificativa é de que o objetivo do destombamento do espaço seria ‘‘colaborar para a melhor utilização de espaços urbanos no Centro do Rio de Janeiro, viabilizando o aproveitamento e ocupação de terreno não-edificado, de modo a promover o desenvolvimento urbanístico e econômico da região próxima a esta Casa Legislativa, em atendimento às normativas de planejamento urbano”.
Porém, a decisão não foi afeita por alguns e o Buraco do Lume pode vir a ser tombado novamente. O arquiteto Manoel Vieira e o historiador Paulo Knauss, integrantes do Conselho Estadual de Tombamento, prepararam, na primeira semana de janeiro, um dossiê de 23 páginas encaminhado ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) contendo o pedido de tombamento do Buraco do Lume em caráter emergencial. Knauss foi também diretor do Museu Histórico Nacional.
Na justificativa do pedido, são apresentados como atributos o desenho urbano associado ao Plano Agache e o seu caráter paisagístico, assim como janela para o passado formada pelo conjunto de edificações do tempo do desmonte do Morro do Castelo.
Opiniões
O futuro do terreno envolve discussões legais que atravessam décadas, a começar pelo debate sobre a vigência de decreto do ex-prefeito Saturnino Braga que, em 1986, alterou parâmetros urbanísticos no Buraco do Lume para permitir que no local fossem construídos apenas equipamentos culturais.
O ex-secretário de Planejamento Urbano e entusiasta de primeira hora do Reviver Centro, Washington Fajardo, é a favor da preservação do espaço e contra a construção. “A área é consagrada como pública desde que surgiu após o desmonte do Morro do Castelo”.
Chicão Bulhões, secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, informa que o processo foi enviado para análise do IRPH. Já Rodrigo Amorim, o deputado que propôs o destombamento, diz não ver sentido em restringir o uso de bens privados. Na Câmara Municipal, ele conta com o apoio do irmão, o vereador Rogério Amorim (PTB), e enfrenta a oposição da presidente do Comitê de Assuntos Urbanos da Casa, Tainá de Paula (PT), que deve assumir o cargo se Secretária Municipal nas próximas horas.
“Vou defender tombamento da área, seja pelo legislativo ou por iniciativa do IRPH”, avisa Tainá.
Puxadinho
Outra polêmica que cerca a região são os famosos “puxadinhos”. Em 2019, o ex-prefeito Marcelo Crivella – que ganhou o título de pior prefeito da história da cidade – aprovou uma lei sobre puxadinhos na cidade e incluiu um ‘‘jabuti’’ no texto: a revogação do decreto de 1986. A lei, de agosto de 2020, foi suspensa em novembro e depois declarada inconstitucional, mas decisão do STF deixou em aberto a possibilidade de a prefeitura prosseguir no licenciamento de projetos protocolados. A Sal deu entrada em setembro de 2020, com a lei da gestão Crivella ainda em vigor.
No ano passado, um parecer da Procuradoria Geral do Município deu novo fôlego para o licenciamento dos puxadinhos, que já acumulavam 3.810 processos pendentes. Mais uma vez, a decisão foi acompanhada de uma ressalva e projetos em que se “verifique ter havido grave violação ao direito ambiental ou urbanístico devem ser negados”.
Vale esclarecer que o terreno objeto da polêmica não é a Praça em si, e sim um terreno hoje ocupado por vegetação rasteira entre o trecho em que a rua da Quitanda encontra-se com a Graça Aranha e a praça onde está o pequeno anfiteatro.