Na coluna publicada em 23 de fevereiro último ( https://diariodorio.com/o-futebol-carioca-fora-da-elite/) o editor Quintino Gomes Freire abordou o futebol carioca fora da elite, tratando das condições atuais de clubes que disputam o campeonato local, erroneamente denominado “Carioca”, oficialmente “Campeonato Estadual do Rio de Janeiro”, que está nos jogos finais de 2024.
Considerando que este gentílico é relativo à cidade do Rio de Janeiro, o que é seu natural ou habitante, há muitos anos tal semântica está equivocada em relação aos times que disputam esse torneio, tornando o campeonato local o único no Brasil a não utilizar o gentílico oficial relativo ao estado.
O Campeonato Carioca, apresentado como “o mais charmoso do país”, realizado na antiga capital da República desde 1906, posteriormente estado da Guanabara. foi disputado, até fusão com o estado do Rio de Janeiro, por times exclusivamente da cidade, com raríssimas exceções, como o Canto do Rio, equipe de Niterói.
As agremiações de outros municípios se organizavam em liga própria, responsável pelo Campeonato Fluminense, que não apresentava importância no cenário regional ou nacional.
A partir de 1979, após a fusão das duas federações formando a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro – FERJ, um novo campeonato estadual passou a incorporar clubes do interior do estado, mas optou pela denominação original de “Carioca”, certamente devido à atração que exercia nos torcedores e futuros patrocinadores.
Aproveitando seu modelo estatutário, a presidência é exercida de modo quase vitalício, mesmo existindo eleições periódicas. O atual presidente se mantém no cargo desde 2006, enquanto seu antecessor permaneceu por vinte e um anos.
Em 20 de fevereiro de 2022, este autor publicou a coluna https://diariodorio.com/william-bittar-clubes-de-futebol-e-estadios-do-rio/, que tratava dos estádios e clubes efetivamente cariocas, com destaque para doze agremiações esportivas que por mais tempo permaneceram nessa disputa.
Os torcedores mais antigos facilmente se lembrarão da divisão em seis grandes – América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama – e os seis pequenos, quase sempre associados aos bairros onde estavam seus estádios: Bonsucesso, Campo Grande, Madureira, Olaria, Portuguesa e São Cristóvão, este último campeão carioca em 1926 (segundo alguns, também em 1937).
Esses clubes considerados “pequenos”, com muita frequência, revelavam atletas de grande qualidade, muitos deles contratados pelos “grandes” e convocados para Seleção Brasileira, posteriormente “importados” por equipes europeias.
Muitas partidas realizadas nos “alçapões”, denominação popular dos pequenos estádios, eram plenas de emoções, com os torcedores colados nos alambrados junto ao gramado, numa temerária proximidade com os atletas e talvez desejável em relação às arbitragens, em tempos sem VAR (Video Assistant Referee, ou Árbitro Assistente de Vídeo), evitando equívocos que geralmente prejudicam os times pequenos ou com menor poder de força junto às respectivas federações, interferindo decisivamente nos resultados.
Os ingressos eram adquiridos diretamente em precárias bilheterias, pouco tempo antes das partidas, inclusive no Maracanã, com raras exceções para as grandes finais. Ambulantes vendiam um pouco de tudo. Pequenas bandeiras, flâmulas, almofadas, sacolés, mate, laranjas descascadas que se transformavam em poderosos artefatos para atingir juízes. Eram menos letais que pilhas de rádio, chinelos, sapatos e até mesmo dentaduras.
Nos alçapões, a torcida visitante ficava nas arquibancadas, degraus de concreto sem cobertura, sobre sanitários mal cuidados e bares improvisados. Os refletores não proporcionavam boa iluminação, mas não havia transmissão ao vivo das pelejas. Muitas vezes as luzes apagavam oportunamente, quando o placar se tornava favorável ao anfitrião.
O mandante contava com a social, às vezes providas de assentos, protegida por marquises, geralmente posicionada no lado oeste, protegida do sol da tarde, causticante para os demais lugares dos modestos estádios.
Os times visitantes geralmente encontravam grandes dificuldades decorrentes das dimensões e condições do gramado pelado ou “rala-coco” e todo o contexto que se formava. Eram os “caldeirões”, como até tempos presentes se denomina o estádio de São Januário, onde a equipe do Vasco da Gama realiza algumas de suas partidas.
O Maracanã, após a Copa do Mundo de 2014 e os jogos olímpicos de 2016, objeto de sucessivas e polêmicas mutilações com a conivência do poder público, transformado numa impessoal e onerosa arena, passou para administração conjugada de Flamengo e Fluminense. O Botafogo adquiriu a concessão sobre o estádio Nilton Santos, o Engenhão, conjuntos que apresentam condições muito distintas para realização das partidas desde a aquisição de ingressos pelos sócios-torcedores ou internet, até a proibição de bandeiras com seus mastros. No entanto, com toda essa pretensa organização, a educação do torcedor sucumbiu. Torna-se praticamente inviável assistir a um jogo sentado naquelas desconfortáveis cadeiras, dispostas em circulações estreitas, impedindo um fluxo razoável dos torcedores.
O saudosismo me recorda as arquibancadas de concreto do antigo Maracanã e seus largos degraus. O público também se levantava em momentos de emoção, com uma sonoplastia muito particular. No entanto, educadamente ou compulsoriamente retomava seus assentos, ou viriam os gritos de “-Senta! Senta!”, podendo ser atingido por um copo de mate, café ou algum objeto de advertência. Exceção para a extinta geral, onde todos permaneciam obrigatoriamente de pé.
Os antigos alçapões cariocas ou os novos, que atendem às equipes do Estado do Rio, são destinados aos jogos considerados menores. Ainda assim guardam resquícios do que foram aquelas partidas realizadas até o final da década de 1970.
Numa escala maior, na segunda semana de abril de 2024 começará o Campeonato Brasileiro, apresentando uma amostragem como o futebol e suas instalações estão pelo território nacional. Os poderosos de sempre contra econômicos orçamentos para montagem de equipes e respectivas comissões técnicas.
Simultaneamente, ocorrem as partidas da singular Copa do Brasil, quando somos apresentados a algumas equipes que sequer ouvimos falar. Em seus modestos estádios, alguns localizados em pequenas cidades desses nossos brasis, retomam-se aquelas partidas de décadas passadas, onde modestos times disputam os jogos de suas vidas, ressuscitando, por noventa minutos, momentos daquele heroico futebol nacional, numa improvável vitória épica sobre os grandes das capitais.
Às vezes surge um resultado improvável e aquele desconhecido e modesto time, que representa toda uma cidade, consegue uma vitória inesperada.
Um grito de gol ressoa nas arquibancadas e ecoa pelas ruas. Por algumas semanas, aquele episódio ganha páginas de jornais e entrevistas nas TVs.
O grande Nelson Rodrigues escreveria que “até os mortos levantaram de suas tumbas” para assistir àquela épica peleja, na qual os grandes “não calçaram as sandálias da humildade” e foram derrotados pelo “Sobrenatural de Almeida”, à Sombra das Chuteiras Imortais.