Sobre as celebrações do Dia de Finados, escrevemos duas colunas, publicadas em 2022 (https://diariodorio.com/william-bitar-dos-sepultamentos-sepulturas-e-cemiterios-no-brasil/) e 2023 (https://diariodorio.com/william-bittar-dia-de-finados-e-cemiterios-do-rio-de-janeiro/), tratando dos nossos mortos humanos.
No entanto, o movimento devorador das cidades em sua incessante busca de espaços para crescer é responsável pela morte de seus próprios marcos culturais, representados por relevantes edifícios.
Assim como os indivíduos urbanos, cidades e edifícios também morrem, seja pela ação de tratores e picaretas, incêndios acidentais ou criminosos ou simplesmente pelo abandono, como as Cidades Mortas, de Monteiro Lobato. Em alguns casos, a mudança de uso concorre por apagar a memória original, guardando eventualmente algum nome como referência.
Nesse Dia de Finados, reverenciemos alguns desses marcos perdidos na trajetória desenvolvimentista, por vezes aedificiumfágica, do Rio de Janeiro, alguns deles sequer deixando resquícios de sua importância de outrora.
Desde o período colonial, a cidade do Rio de Janeiro foi pródiga em maltratar sua paisagem e seus bens culturais: lagoas aterradas, morros demolidos, ruas alargadas, restando muito pouco dos primórdios de sua fundação. O próprio Morro do Castelo, segundo endereço do Rio após o núcleo implantado aos pés do Pão de Açúcar, foi arrasado na década de 1920, sob estranhas alegações de conforto e ventilação. As picaretas nervosas demoliram o morro, a antiga Sé dedicada a São Sebastião e o notável Colégio dos Jesuítas, referências perdidas da formação da cidade.
A Corte Portuguesa, aqui aportada em 1808, preservou a arquitetura religiosa enquanto promovia drásticas mudanças nas ruas e na arquitetura civil, composta de suas modestas casas caiadas com esquadrias coloridas.
A República, com seu ímpeto sanitarista, alterou definitivamente a fisionomia colonial, promovendo centenas de demolições na área Central, durante a implantação do Plano Passos que se estendeu pela recém-aberta Avenida Beira-Mar.
Desapareceram, entre tantos bens importantes, a antiga Igreja de São Joaquim, próxima ao Colégio Pedro II, na Av. Marechal Floriano e o Convento da Ajuda, do século XVIII, localizado na atual Cinelândia. Definitivamente era um Estado laico.
Em 1937, o Governo Federal promulgou o Decreto-Lei nº25, de 30 de novembro, organizando a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
No entanto, essa mesma legislação não foi suficiente para impedir a demolição de edificações referenciais, com importantes valores históricos, artísticos ou culturais.
Uma das primeiras vítimas da sanha demolidora foi o notável edifício neoclássico inaugurado em 1826, projetado por Grandjean de Montigny, localizado na Travessa das Belas Artes, nas imediações da Praça Tiradentes.
Por quase um século a construção abrigou a Academia de Belas Artes, berço do ensino de Arquitetura no Brasil (https://diariodorio.com/historia-da-escola-de-belas-artes/). No início do século XX, com a República, a instituição foi transferida para um novo edifício, na Praça Floriano. A antiga academia passou a abrigar repartições do Ministério da Fazenda até sua demolição em 1938, sob alegação da necessidade da construção de uma nova sede naquele terreno, o que jamais ocorreu. A área foi ocupada por um grande estacionamento, enquanto sua portada foi transferida para o Jardim Botânico.
Poucos anos depois, no início da década de 1940, em pleno Estado Novo, sob alegação da abertura da Avenida Presidente Vargas, um dos mais notáveis templos do Rio de Janeiro, destacado por sua planta curvilínea e um interior de concepção rococó, foi sumariamente demolido. A igreja de São Pedro dos Clérigos, ainda que tombada anteriormente pelo Patrimônio Nacional, caiu aos golpes de tratores e picaretas (https://diariodorio.com/william-bittar-devocao-culto-e-a-demolicao-da-antiga-igreja-de-sao-pedro-dos-clerigos-no-rio-de-janeiro/).
As grandes obras continuaram nas décadas seguintes, com a implantação de novos túneis e pistas elevadas, como a Perimetral, responsável pelo desaparecimento do antigo Mercado Municipal, na Praça XV, do qual só restou uma única torre, ocupada por um restaurante. O automóvel tornava-se protagonista dos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
O endereço da Praia do Flamengo, 132, abrigou por duas décadas o icônico prédio-sede da União Nacional dos Estudantes, instituição com papel decisivo na luta contra a ditadura, entre outras campanhas importantes de resistência. Originalmente, ali funcionava o Clube Germânia, numa edificação eclética, com elementos classicizantes. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, os estudantes ocuparam o edifício, simbolizando a luta contra o nazismo. O Presidente Vargas promoveu a doação do imóvel para a UNE, que ali instalou o primeiro restaurante estudantil do país, antes de se constituir em sua sede.
Em abril de 1964, um dia após o golpe militar, o edifício foi incendiado e demolido vinte anos depois. Em 1982, o arquiteto Oscar Niemeyer projetou uma nova sede para a UNE. No entanto, somente em 2007 os estudantes recuperaram seu terreno, recebendo uma nova versão do projeto, cujas obras se encontram paralisadas há quase uma década (https://diariodorio.com/projeto-de-niemeyer-obra-de-predio-esta-paralisada-ha-anos-na-praia-do-flamengo/).
O “Milagre Econômico” impulsionou a construção civil, erguendo grandes edifícios residenciais por toda a cidade, erradicando favelas, demolindo exemplares notáveis e tradicionais.
Na rua Jardim Botânico, a sociedade assistia, com resistência de poucos, à demolição do Solar de Monjope, principal representante da arquitetura neocolonial. Tratava-se da residência de seu principal mecenas, o médico José Mariano Filho, defensor incansável de uma arquitetura com raízes luso-brasileiras. Após idas e vindas de uma demanda política e jurídica, um trator entrou pelo edifício, arrasando quase tudo que estivesse pela frente, naquele início de 1974. A Divisão de Patrimônio do antigo Estado da Guanabara tentou, em vão, impedir. Mas a influência dos envolvidos era muito mais poderosa e o Monjope caiu diante das câmeras de TV.
Dois anos depois, o governo militar assistiu (e incentivou) a demolição do antigo Senado Federal, o Palácio Monroe, localizado no final da Avenida Rio Branco. Diante de uma maior reação popular, foram criadas diversas justificativas, algumas insustentáveis, mas o edifício querido da população, com seus inesquecíveis leões na fachada, jazeu por terra naquele 1976 (https://diariodorio.com/a-historia-e-a-controversia-da-demolicao-do-palacio-monroe-icone-arquitetonico-do-rio-de-janeiro/).
No mesmo ano, uma residência que despertava muita curiosidade e era motivo de algumas lendas urbanas, o palacete Martinelli, localizado na Av. Oswaldo Cruz, Flamengo, era demolido sob proteção policial contra os protestos de alguns. Naquele enorme terreno subiu um complexo de edifícios multifamiliares, com muitos pavimentos. Aquele curioso castelo, projetado por Antonio Virzi, com um singular partido arquitetônico, não resistiu à fúria do crescimento nem sempre ordenado da cidade.
Em 1981, a Praça Mauá presenciou a demolição de um edifício comercial que levava seu nome, projetado por Gastão Bahiana, durante a implantação da Avenida Central. A Casa Mauá, em terreno que pertencia aos Beneditinos, apresentava um programa arquitetônico composto de lojas no térreo e escritórios nos pavimentos superiores, alguns já providos de banheiros. A fachada adotou a referência medieval, com elementos neogóticos que atraíam a atenção dos transeuntes. Diante dos poucos protestos, alguns órgãos de classe alegaram a “baixa qualidade estética e construtiva” do imóvel, não merecendo, portanto, tombamento. Contrariando as afirmativas oficiais, a demolição durou quase um ano, tal a qualidade dos materiais e estabilidade da estrutura adotadas. Naquele terreno ergueu-se uma torre alardeada como uma novidade pós-moderna, o Rio Branco 1 – RB1, nitidamente inspirado num projeto do americano de Philip Johnson. Lojas de câmbio, souvenirs, botequins, casas noturnas e até mesmo um pequeno mercado foram substituídos por um pórtico contemporâneo.
Aquele mesmo ano assistiu à demolição de um marco da histórica tijucana, um palacete eclético, no centro de um amplo terreno que, por décadas, foi residência do Duque de Caxias, na Rua Conde de Bonfim, esquina com a rua Conselheiro Zenha. Após a morte de seu ilustre proprietário, o edifício contou com ocupações distintas, como um clube e a sede feminina do Colégio Lafayette, a partir de 1916.
Com a valorização da região e as dimensões daquele terreno, houve várias investidas para sua venda até que um incêndio inexplicável destruiu o prédio, já muito modificado, em 1970. No local, alguns anos depois, foi construída uma filial da loja de departamentos Mesbla, inaugurada em 1981, que fechou suas portas em 1999. O edifício foi ocupado por uma rede de supermercados, apagando definitivamente a memória do uso original.
Em outubro de 2013, sucumbia às picaretas a última residência unifamiliar localizada na Av. Atlântica, em Copacabana (https://diariodorio.com/a-ultima-casa-da-orla-de-copacabana/). A “Casa de Pedra”, como ficou conhecida por conta do acabamento de seu muro e fachada, provavelmente foi construída na década de 1920, num segundo momento de ocupação daquele antigo areal. Aquela obra remanescente pertenceu à Sra. Zilda Azambuja Canavarro Pereira, já centenária quando faleceu. O valorizadíssimo terreno foi destinado à construção de um hotel contemporâneo.
Além da coleção de edifícios notáveis demolidos, a cidade também acumula outros mortos, assim como aquelas Cidades Mortas, de Lobato. São marcos de épocas diversas, adaptados para novos usos. Contribuições que, pouco a pouco, apagarão os resquícios das memórias originais. Cinemas que se transformaram em mercados, estacionamentos ou templos religiosos; residências de arquitetura singular, ocupadas por prestadores de serviço; antigos clubes, abrigando oficinas; fachadas preservadas como antigas máscaras para as torres residenciais ou comerciais, simulando preocupação com o patrimônio cultural.
A cidade devora suas próprias tradições para continuar vivendo. Às vezes, às custas da morte de alguns protagonistas que homenageamos neste réquiem pelos Finados Edifícios.