Itens valiosos em prata de lei subtraídos de duas igrejas históricas do Centro do Rio – Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores e Nossa Senhora do Monte do Carmo – além de dois imensos tocheiros da catedral de Belém (PA), estão na mira de uma investigação da Polícia Federal, que pode vir a desvendar um grande mistério que cerca o desaparecimento de praticamente toda a prataria da Igreja dos Mercadores, nos anos 70 e 80, e parte dos sucessivos sumiços de peças que vêm sendo documentados pelo Iphan da Igreja do Carmo há décadas. As pecas – um total de 10 – foram encontradas na casa de leilões Dagmar Saboya, uma das mais conhecidas e refinadas antiquárias do país. O fato é agravado porque pelo menos três destes objetos foram furtados há décadas da Ordem Terceira do Carmo (na rua Primeiro de Março) e constavam no cadastro de Bens Culturais Procurados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) claramente classificados como peças roubadas, inclusive com fotografias e descrição.
Este cadastro de patrimônio cultural surrupiado ou desaparecido, conhecido pelos antiquários, museólogos e leiloeiros como BCP, é acessível a qualquer um através da internet, neste link. Nele, é possível buscar pelo tipo de objeto, nome do artista, ano do desaparecimento, local do sumiço e época de fabricação. É uma ferramenta vital para quem atua no setor, pois antes de se aceitar uma peça à venda, ou mesmo antes de adquiri-la, procura-se no BCP pela peça para saber se tem boa procedência. Um conjunto de sacras de prata (espécie de suporte em prata com orações gravadas para serem lidas pelo padre durante a missa sem necessidade de folhear o missal) que estava sendo leiloado por quase 60 mil reais tinha bem no centro o símbolo da Ordem do Carmo (uma montanha com 4 estrelas), o que poderia gerar a um especialista a curiosidade de checar se não pertenceria à referida ordem. Além disso, ao se fazer a busca por sacras no BCP, é possível encontrar justamente as três peças desaparecidas, em menos de 2 minutos de procura. Ao que tudo indica, esta providência não foi tomada nem pelo leiloeiro Luis Sergio Pereira e nem pela equipe da casa de leilões.
O aviso ao Iphan partiu do provedor da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, o empresário Claudio André de Castro, que conseguiu identificar entre os lindos – e caríssimos – lotes expostos e depois apregoados pelo leiloeiro Luis Sergio cinco itens idênticos a alguns que desapareceram do santuário tombado, e que estavam sumidos há cerca de 40 anos. Eram três sacras com o monograma da irmandade e um par de tocheiros de prata que integravam uma banqueta de altar (foto principal da reportagem – originalmente contava com seis castiçais iguais, seis palmas de prata e um monumental crucifico de banqueta – tudo desaparecido). Os tocheiros com lance mínimo de R$ 45 mil e as sacras com preço de base de R$ 21 mil. A igreja fica na Rua do Ouvidor e é do século XVIII, tendo sido reaberta em junho, após quatro anos fechada. A igreja é tombada pelo Iphan no chamado Tombo de Belas Artes; ou seja, tudo que pertence à Igreja é tombado, inclusive todos os objetos que a guarneciam no momento do tombamento, em 1937; isso inclui até cálices, sinetas e coisas simples como apagadores de vela de época, significando que nem mesmo quem assina pela irmandade para vender um imóvel ou contratar um empregado tem poder de alienar nada que fazia parte da igreja no dia em que foi declarada patrimônio cultural do povo brasileiro.
O caso dos imensos tocheiros da Catedral das Graças, em Belém, também é muito curioso e pode vir a chamar atenção dos policiais. Com quase 1 metro de altura, os monumentais castiçais trazem, com cerca de um palmo de altura, os dizeres “Sigillus Capituli Cathedralis Ecclesia Magni Para – Mater Gratia“, significando “SELO DO CABIDO DA CATEDRAL DA IGREJA DO GRÃO PARÁ – MÃE DAS GRAÇAS”, segundo especialistas. Ou seja, estava escrito nos castiçais exatamente de onde foram retirados, em letras garrafais. A igreja foi construída entre 1748 e 1774 e também é bem tombado nacional, desde 1940. O DIÁRIO apurou que por volta dos anos 50, um suposto restaurador retirou um grande conjunto de pratarias da catedral paraense, e jamais as devolveu. Entre elas, os dois gigantes itens de prata que apareceram no leilão de Saboya.
A estimativa é que só na Igreja da Lapa tenham desaparecido cerca de 130 itens ainda sem destino conhecido, um prejuízo de mais de R$ 1,5 milhão, segundo a Irmandade. São imagens, coroas, cálices, monumentais cruzes e varas de prata, armários, cadeiras e até mesmo cabeças de anjo que foram serradas de dentro da capela. Um inventário interno muito completo foi feito em 1945, que tem servido de base para que a instituição produza uma grande relação de ítens desaparecidos; além disso, existe um álbum fotográfico com parte das peças, de 1947, e também o arquivo Noronha Santos do Iphan, que fotografou a Igreja no detalhe. O provedor também encontrou cerca de 150 negativos, que revelou, mostrando como era o templo antes dos gatunos e espertalhões retirarem as peças. Como a igreja é um bem tombado, Daisy Ketzer, da Comissão de Patrimônio da Arquidiocese do Rio, reitera que todos os itens pertencentes à igreja são tombados juntos. “Os primeiros tombamentos aconteceram a partir de 1938, após a criação do sphan atual Iphan. Todos os primeiros tombamentos foram com ‘porteira fechada’, ou seja, todo o conteúdo também foi tombado, pratarias, alfaias, pinturas a óleo etc. Caso das igrejas históricas do Centro do Rio. As retiradas podem ter ocorrido no passado, mas hoje nossos padres são preparados para ter este olhar sensível na proteção do patrimônio, com formação de padres, com mestrado e doutorado na área”, garante Daisy.
O provedor da irmandade explica que a Polícia Federal deverá apurar a versão de que nos anos 80 um antiquário teria vendido praticamente todas as peças de prata da Lapa dos Mercadores a um grande colecionador – um empresário da construção, dizem – de arte do país na época. “O comitente destas peças que identificamos pode vir a ter em sua posse grande parte das outras que desapareceram da nossa igreja; por isso, é preciso que se aja rápido, tendo em vista que não é comum o aparecimento de tantas peças extraviadas de bens tombados ao mesmo tempo”, afirma. Uma reportagem da Band mostrou que até mesmo um armário de parede da igrejinha foi subtraído, deixando expostos os paramentos dos sacerdotes.
O ex-superintendente do Iphan Manoel Vieira falou da recomendação do Conselho Consultivo do Iphan, de 1985, que fala que todos os bens móveis integrados existentes dentro das igrejas são considerados tombados no momento do tombamento, ou posterior. Vieira ainda alerta que é necessário que a Polícia Federal siga com as investigações e não só foque na devolução dos itens. “Quando se fez a recomendação, já se observava furtos e extravio em geral de peças do interior das igrejas e o Iphan entendeu a gravidade. A Polícia tem que investigar até que se encontre os autores dos roubos”, reforça.
Já o ex-secretário de Urbanismo do Rio, Washington Fajardo, defende que além da parte intelectual, haja sempre uma Brigada de Patrimônio. “Tratam-se de bens agregados ao bem tombado. E a arquitetura e o ornamento de uma igreja são inseparáveis. A falta de inventário, inclusive digital, facilita o roubo. Não estamos mais nos anos 30, que não tinha Iphan. Já existe, falta não ter mais esta acomodação institucional. É importante que tenha funcionários que impeçam a saída com itens sacro debaixo do braço”, opina.
O que dizem os especialistas
A arquiteta, urbanista e conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) Leila Marques lembra que o escultor Aleijadinho era também ele mesmo o artista que esculpia as esculturas do interior das igrejas que ele fazia. “Assim ocorre com as demais igrejas. Ninguém vai a Notre Dame ver as paredes vazias. Quando uma igreja é desenhada, projetada, todas as peças eram desenhadas juntas”, conta a arquiteta, que completa que as peças encontradas para leilão devem ser devolvidas pelo significado que têm no local de origem. Não é à toa que os candelabros de prata encontrados pertencentes à Igreja dos Mercadores têm o monograma da irmandade entremeados por rosas exatamente iguais às que constam das talhas nas paredes do templo.
O historiador Claudio Prado de Mello afirma que, antigamente, era comum até o próprio provedor vender ou retirar os itens, prática que é absolutamente proibida quando há tombamento. “Antes, as Irmandades eram ricas e recebia itens da sociedade por herança, era comum os fiéis deixarem parte do patrimônio às igrejas, mesmo tendo herdeiros. E havia uma disputa de quem tinha o interior mais bonito, o altar. Com a decadência financeira no século XX, muitos provedores passaram a subtrair itens, e chegavam a vender, doar, além de colecionar. Um objeto desses não pode ser alienado. Mas, quando eu era do Inepac (sigla para Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), não recebíamos nenhum documento quando o objeto é colocado para leilão, conforme deveria ser feito, por exemplo”, queixa-se. Não é à toa que o Iphan tem um departamento com a função de receber e conferir todos os leilões de arte; todos os catálogos são enviados a este departamento, como ocorreu no caso das peças encontradas com Dagmar Saboya.
Fundador da SOS Patrimônio, Marconi Andrade, disse que que tentou-se criar, em 2016, o Conselho de Arte Sacra, mas com a mudança do bispo que estava à frente para Teresópolis, não se deu continuidade. A intenção, segundo Andrade, era levantar odas as obras de arte das igrejas do Rio. “Os padres não têm este conhecimento da importância das peças e ter o controle delas. Hoje é fundamental. Temos padres que nem fazem boletim de ocorrência em caso de furto e o problema se agrava quando sai para outra cidade. Tivemos peças furtadas da Igreja do Bonfim, em São Cristóvão, que foi parar no antiquário de outro estado. Até mesmo a Polícia Federal não tem gente especializada para fiscalizar melhor estes leilões. O que ocorreu agora motiva um pontapé inicial para mudarmos esta realidade”, convoca Andrade. Hoje, a Arquidiocese do Rio de Janeiro conta com uma Comissão de Patrimônio, que, com recursos da Vale e do BNDES, está realizando o inventário de todas as Igrejas da Cidade. Inclusive, o primeiro volume deste inventário já foi editado.
O superintendente do Iphan no Rio, Paulo Vidal, informou que o cadastro digital de objetos desaparecidos de igrejas tombadas está incompleto. Os itens, que já estão acautelados, passarão por perícia tanto pelo órgão quanto pela PF, mas não se tem certeza de que foram obtidos por meio de crimes como furto ou roubo. “Não estamos em busca de culpados, e sim das peças, cuja propriedade é da irmandade“, afirmou o provedor Castro, que garantiu que providenciará a inclusão, no BCP, de todas as fotos e descrições de ítens desaparecidos: “é prioridade da nossa administração, que começou em março”, pontua o representante.
Irmandade dos Mercadores diz que a busca não vai parar por aqui
Enquanto as investigações não são concluídas, o responsável pela Lapa dos Mercadores, que vem de uma família de colecionadores de arte, enfatiza a nulidade de eventuais leilões ou vendas que busquem comercializar as peças subtraídas da igrejinha dos mercadores: “Os bens tombados não podem ser mutilados e, mesmo que as peças tenham sido vendidas, a venda será anulada. Não existe usucapião de bem tombado; as pecas das igrejas tombadas são coisas cujo comércio é proibido, e desde já venho advertir: quem paga mal, paga duas vezes. O Iphan tem sido parceiro e colaborado conosco na busca pela recuperação de um acervo que foi fruto da devoção e do amor dos que nos antecederam, e a Irmandade vai agir até as últimas consequências na busca de seu patrimônio, que, no fim, é o patrimônio de todos os brasileiros”, salienta, dizendo que a sociedade vai cobrar da Delegacia Especializada em Patrimônio, conduzida pela delegada Paula Mary Gonçalves, investigação dos fatos, tendo em vista a quantidade imensa de peças desaparecidas e que integram o acervo cultural do país.
As peças sacras foram apreendidas na última segunda-feira (23) à tarde pelo Iphan e pela Polícia Federal e agora irão passar por perícia, para, uma vez oficialmente verificado serem as mesmas peças, serem devolvidas às Igrejas de origem.
Outro Lado
Segundo o responsável pelo leilão, leiloeiro Luiz Sérgio Pereira, os objetos vieram de acervo de clientes particulares, mas não houve suspeita sobre a procedência por parte dele. Ele ainda se colocou à disposição do Iphan e da PF para esclarecimentos. As peças foram retiradas de venda assim que Pereira foi notificado. A Polícia Federal afirmou que não comenta investigações em andamento.
O Caso dos Furtos na Igreja do Carmo
Um caso emblemático é o desaparecimento sucessivo e repetido de pecas sacras de uma das igrejas com acervo mais rico do país, a Igreja do Carmo, que pertence à uma Associação de Fiéis, a Ordem Terceira do Carmo, dona do oratório que acabou de ser restaurado após 26 anos em semi-ruína. A igreja se encontra interditada. Trabalho sobre os furtos de obras de arte do pesquisador Raphael João Hallack Fabrino traz informações valiosas sobre o repetido saque à igreja da Rua Primeiro de Março, de onde sumiram as agora reaparecidas sacras que estavam no BCP. Os “extravios” começam em 1993, quando os bens do acervo chegavam ao impressionante número de 1.000 peças. A 30 de novembro de 1993 uma reportagem no Jornal do Brasil mostrava que dois tocheiros da igreja iriam ser leiloados em São Paulo, com lance mínimo de vinte e cinco mil dólares. O leiloeiro na época colocou a boca na botija e disse que as pecas eram da loja Porto Real Antiguidades, aqui do Rio. A mesma matéria falava do furto de outras peças da igreja, mencionando três lampadários enormes de prata. No dia 1° de dezembro do mesmo ano, o Secretário Geral da Igreja, Armindo Diniz (que hoje ainda integra a instituição), disse que os tocheiros haviam desaparecido há três anos; disse que a igreja foi vítima de “vários furtos”, mas não sabia precisar sua quantidade ou o tamanho dos prejuízos.
Em 1994, numa nova visita ao templo carmelita, foi notado o sumiço de mais peças, como outros quatro tocheiros, três lampadários que haviam sido substituídos por outros de latão, e vários outros objetos como pinturas, espelhos, ânforas, etc. Na visita seguinte, a fiscal do Iphan teria encontrado diversos ambientes completamente vazios e mais peças desaparecidas, assim como constatou que os funcionários encarregados de cuidar do acervo haviam sido mudados. E algo bem curioso havia acontecido: por alguma razão, dentro da mesma igreja, as coisas tinham sido mudadas de lugar, dificultando a conferência das peças.
Em 8 de abril do mesmo ano, um episódio marcante ocorreu quando a vice-priora do noviciado teria barrado a vistoria das caixas fortes do templo, alegando primeiro a falta da chave, depois a ausência do prior e por fim a realização de um casamento na igreja como justificativas. Em 13 de abril, segundo o texto de Fabrino, finalmente foi possível realizar a vistoria. Nesse dia, os técnicos do IPHAN foram recebidos pelo prior (espécie de presidente), secretário geral e vice-priora da Ordem, que permaneceram no local por aproximadamente 30 minutos. Durante essa vistoria, surgiram informações cruciais: o prior expressou descontentamento em relação aos técnicos do IPHAN, questionando a vistoria anterior e a autenticidade das credenciais apresentadas.
Além disso, descobriu-se o desaparecimento de algumas peças de grande porte. Curiosamente, registros apontaram que a igreja já havia comunicado o furto de peças não especificadas em outubro de 1993, bem como o furto e a substituição dos lampadários de prata e o desaparecimento da Essa em 8 de novembro de 1993. No ano seguinte, um dossiê detalhado listou a impressionante cifra de 227 objetos desaparecidos na igreja. Esse número aumentou para 229 com a inclusão da imagem e do crucifixo relatados pela museóloga Eleonore Ana Leite.
No início de 1995, durante uma vistoria de rotina em junho, foram constatados mais cinco objetos desaparecidos, incluindo pinturas com molduras entalhadas por Mestre Valentim e pares de arandelas em metal dourado. Em setembro de 1995, uma nova vistoria revelou o furto de vinte e cinco novos objetos, além da recuperação de três bens que foram reintegrados ao acervo da igreja. Nesse contexto, a Delegacia Fazendária da Polícia Federal na época estava conduzindo investigações para desvendar uma possível quadrilha especializada envolvendo leiloeiros, colecionadores e comerciantes na compra e venda de objetos de Arte Sacra.